segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Morretes como ela mesma



Os morretenses da minha época devem estar lembrados dos conflitos e das disputas com os antoninenses que eclodiam no futebol quando as equipes das duas cidades jogavam. Os juízes de futebol que apitavam as partidas dos times das duas cidades já vinham psicologicamente preparados a deixar o campo às disparadas para não apanhar por marcar faltas sempre tidas como proteção ao time adversário. Os antoninenses eram chamados de pés de anjo porque, diziam, tinham o hábito de usar tênis. Em contrapartida, diziam que os morretenses andavam de tamanco. Antonina tinha porto de mar, as Casas Pernambucanas, uma rádio, mas dependiam de baldeação de trem em Morretes. Os moradores de uma cidade sempre consideravam os da outra como os outros, os diferentes.

Mas o outro nem sempre é o diferente. Quando fui fazer o alistamento para o serviço militar na Base Aérea, avisaram-me que não estavam aceitando soldados de Morretes, de Antonina e de Paranaguá porque eram “puladores” (faltavam ao expediente, saíam escondidos, chegavam atrasados...) e não podiam ficar um final de semana fora do litoral. Para os curitibanos, todos os pirimbus eram iguais; mas as diferencias começavam surgir quando tomavam o misto (o trem da tarde, com vagões de carga e de passageiros) para descer a serra. E ficavam mais evidentes durante as tentativas de conquistar as meninas de Piraquara (por sinal muito bonitas!).
Estas relações conflituosas são rotineiras quando pessoas pertencentes a diferentes grupos (de países, Estados, cidades, times de futebol, escolas de samba, etc.) se encontram. Estas diferenças também aparecem dentro de grupos menores.
Continuando com o exemplo de Morretes, o riozinho (“rio da Fábrica”) que corta a cidade, dividia-a em duas metades, a do Operário e a do Cruzeiro (novamente o futebol!); o lado do Operário era PSD e o do Cruzeiro UDN. O “pedaço” do PTB (que agrupava os ferroviários) era do outro lado dos trilhos da Estrada de Ferro. Esta rivalidade dividia amigos e membros de família: Valdinho e os filhos da Chiquita moravam do lado do Operário, mas eram cruzeiristas; Divar, cruzeirista até hoje, é sobrinho de Valdico (irmão de Chiquita), operarista até a alma que hoje mora “do lado do Cruzeiro”. Corta cabelos na barbearia de Divar. Havia os que mudavam de lado. Nenê Scremin pertencia do lado do Operário, mas começou a jogar no Cruzeiro. Tanto fizeram que o trouxeram de volta. Evaldo Zilli sempre viveu do lado do Cruzeiro, mas foi “levado” para o Operário. Benedito Rolha, seu Roberto Lopes e filhos eram operaristas roxos que moravam do lado do Cruzeiro. Lauro Lopes, filho de seu Roberto, foi jogador do Cruzeiro e depois passou para o Operário. Os que mudavam de time eram trânsfugas para os antigos companheiros e motivos de elogios para os do novo time.
As situações descritas acima indicam que ser igual ou ser diferente é uma questão de situações e de interesses de momento. Em Curitiba (e até pegar o trem), morretenses e antoninenses eram todos iguais (“puladores”, por exemplo); em Morretes eram todos iguais frente aos antoninenses, mas se diferenciavam quando prevaleciam assuntos locais. Entra, aí, o conceito de gente. Gente somos nós; os outros não são gente. O que nos torna gente, então, é sermos iguais. Claro que isto tem gradações. Se estudarmos a história das famílias no Brasil, aprendemos que alguém para ser gente teria que se agregar a uma família, tornando-se “gente da família...” Não se agregando – e, portanto não sendo gente – perdia até o direito à vida. Os grupos tribais sempre se denominam como gente. Se for de outro grupo não será gente. Se trouxermos o ontem para o hoje e o que for indígena para nossa sociedade, podemos citar os exemplos das torcidas uniformizadas em que o simples vestir uma camisa de time adversário será motivo para “deixar de ser gente”.
Nós, de Morretes (nascidos, adotados, etc. pela cidade), somos gente de Morretes. Se assim somos, é porque temos interesses coincidentes, visões de mundo semelhantes (quem vê diferenças entre nós, somos nós mesmos), e, portanto características comportamentais similares. Esta identificação em ser “gente de...” é porque nascemos no seio de um grupo, ou uma comunidade, onde aprendemos a ser um de seus membros. Há, neste lugar geográfico em que nascemos uma população (um ambiente social) e uma paisagem (um ambiente físico, com um tipo de topografia, de solo para agricultura, de comércio, de meios de comunicações, tipos de comida – como o barreado). A interação destes dois elementos proporcionará uma característica especial aos seus moradores, à sua arquitetura, às suas atividades econômicas, um modelo de poder político, etc. Teremos, então, a partir destas características dizer que Morretes é assim e desta forma Antonina é diferente porque existem outras características que colaboraram em sua formação histórica. Apesar de muito próximas. Em outras palavras, em cada uma das cidades existem maneiras de agir, de sentir e de pensar apropriadas.
Estas maneiras de agir, de sentir e de pensar são uma forma simplificada do que os antropólogos chamam de cultura. Existem aquelas maneiras genéricas que chamamos de brasileiras e outras, ainda mais genéricas, que chamamos de ocidentais. Cultura brasileira e cultura ocidental. Se por um lado estas maneiras de agir, de sentir e de pensar podem se tornar cada vez mais genéricas, também podem se tornar mais específicas, podendo chamá-las de subexpressões culturais. O Paraná enquanto sociedade representa uma subexpressão da cultura brasileira, mas também pode ser considerado como uma subexpressão cultural do sul brasileiro. Mas também pode ser classificado segundo diferentes regiões, os chamados Paraná do sul, Paraná do norte, oeste do Paraná, e assim por diante. Qualquer divisão cultural que se queira fazer será válida porque nenhuma das regiões selecionadas é homogênea. Morretes poderá ser classificada como uma destas especializações. E é isto, então, que nos torna “gente de...” Nós fomos “construídos” pelo nosso grupo social e é isto que nos torna pessoas.
Se fomos socialmente “construídos”, esta “construção” obedeceu a um modelo sociocultural, econômico e político de onde fomos criados e educados. Nós, com as nossas idiossincrasias, denunciamos esta nossa socialização (o nome técnico daquilo que dissemos na frase anterior). Nós seremos reconhecidos (identificados) como um participante de determinado grupo. A nossa identidade foi construída desta forma. Só que a nossa identidade tem o sentido de mostrar em que grupo fomos socializado. A identidade de Morretes é a síntese das identidades apresentadas pelos morretenses. Claro que, quando fora de Morretes esta identidade de morretense em Morretes não terá significado porque agora todos são morretenses, e portanto “iguais”.
Falei de cultura enquanto conceito antropológico. O significado é amplo com o sentido de cultivo, seja na agricultura, seja no saber. A pessoa que estudou ou que lê muito, que “sabe das coisas”, é reconhecida como uma pessoa de cultura. Ela cultivou um saber. Um país, uma comunidade, também podem cultivar e conservar o saber de seus membros através de livros, bibliotecas, museus, monumentos, etc. Cada um de nós somos partes da (e de uma) história e o cultivo do saber é a preservação da memória desta história. E assim poderemos saber e dizer o quê e quem somos. Parte de minha história, e, portanto de minha identidade, está em Morretes. Se não preservar a memória desta identidade, perderei as minhas raízes. Podemos – e devemos – dizer o mesmo para com uma comunidade (ou cidade).
Quando passo por São Sebastião sinto uma saudade imensa de minha Morretes; quando vejo fotos de Parati lembro logo de Antonina. Estas cidades, de idades aproximadas, apresentam características semelhantes: as suas casas, as suas ruas e a disposição arquitetônica, seguiram um modelo cultural do momento histórico em que foram construídas. Por trás disto está o saber daquele momento, a disposição segundo as hierarquias social, política e econômica, um momento histórico congelado naquelas obras construídas pelo homem. É desta forma que vemos Morretes. Esta é a sua identidade. (Mauro Cherobim – São Paulo – jul/1997)
(Publicado originalmente em: Morretes como ela mesma. Jornal do Leste. Curitiba: outubro de 1997, p.08 (Opinião))

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O que é liberdade?

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O que é liberdade?
Escrevi este texto há algum tempo. Foi lembrado por uma amiga e postou em um tópico de uma comunidade do Orkut. Se serviu para a reflexão lá, talvez sirva aqui. E por isto compartilho com os leitores deste blog.
A liberdade não é só sair de trás das grades. Esta é a liberdade física. A verdadeira liberdade é poder ser, poder pensar, poder falar. É deixar falar e deixar pensar. A verdadeira liberdade é aceitar o outro, o diferente.

Liberdade não é dizer eu sou livre; a verdadeira liberdade é ser livre.

A verdadeira liberdade não ter a liberdade de ser submisso ao pseudo legalismo; ter liberdade é dizer não ao autoritarismo e enfrentá-lo.

Ter liberdade é poder olhar nos olhos dos outros e fazer com que os seus descendentes se orgulhem de você, inclusive pelos seus erros.

Ser livre é ser ético. É respeitar. Não é vestir máscaras para praticar chacotas.

Muita gente foi presa durante a ditadura e não aprendeu a ser livre; tornou-se simplesmente liberta. Ser liberto não é ser livre.

Não é fácil ser livre. Pouquíssimas pessoas são livres.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Ainda o assédio religioso

Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk3007200922.htm. Acesso em 19/08/2009.

30 de julho de 2009



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JUCA KFOURI

Deixem Jesus em paz


Está ficando a cada dia mais insuportável o proselitismo religioso que invadiu o futebol brasileiro


MEU PAI , na primeira vez em que me ouviu dizer que eu era ateu, me disse para mudar o discurso e dizer que eu era agnóstico: "Você não tem cultura para se dizer ateu", sentenciou.
Confesso que fiquei meio sem entender. Até que, nem faz muito tempo, pude ler "Em que Creem os que Não Creem", uma troca de cartas entre Umberto Eco e o cardeal Martini, de Milão, livro editado no Brasil pela editora Record.
De fato, o velho tinha razão, motivo pelo qual, ele mesmo, incomparavelmente mais culto, se dissesse agnóstico, embora fosse ateu.
Pois o embate entre Eco e Martini, principalmente pelos argumentos do brilhante cardeal milanês, não é coisa para qualquer um, tamanha a profundidade filosófica e teológica do religioso. Dele entendi, se tanto, uns 10%. E olhe lá.
Eco, não menos brilhante, é mais fácil de entender em seu ateísmo.
Até então, me bastava com o pensador marxista, também italiano, Antonio Gramsci, que evoluiu da clássica visão que tratava a religião como ópio do povo para vê-la inclusive com características revolucionárias, razão pela qual pregava a tolerância, a compreensão, principalmente com o catolicismo.
E negar o papel de resistência e de vanguarda de setores religiosos durante a ditadura brasileira equivaleria a um crime de falso testemunho, o que me levou, à época, a andar próximo da Igreja, sem deixar de fazer pequenas provocações, com todo respeito.
Respeito que preservo, apesar de, e com o perdão por tamanha digressão, me pareça pecado usar o nome em vão de quem nada tem a ver com futebol, coisa que, se bem me lembro de minhas aulas de catecismo, está no segundo mandamento das leis de Deus.
E como o santo nome anda sendo usado em vão por jogadores da seleção brasileira, de Kaká ao capitão Lúcio, passando por pretendentes a ela, como o goleiro Fábio, do Cruzeiro, e chegando aos apenas chatos, como Roberto Brum.
Ninguém, rigorosamente ninguém, mesmo que seja evangélico, protestante, católico, muçulmano, judeu, budista ou o que for, deveria fazer merchan religioso em jogos de futebol nem usar camisetas de propaganda demagógicas e até em inglês, além de repetir ameaças sobre o fogo eterno e baboseiras semelhantes, como as da enlouquecida pastora casada com Kaká, uma mocinha fanática, fundamentalista ou esperta demais para tentar nos convencer que foi Deus quem pôs dinheiro no Real Madrid para contratar seu jovem marido em plena crise mundial. Ora, há limites para tudo.
É um tal de jogador comemorar gol olhando e apontando para o céu como se tivesse alguém lá em cima responsável pela façanha, um despropósito, por exemplo, com os goleiros evangélicos, que deveriam olhar também para o alto e fazer um gesto obsceno a cada gol que levassem de seus irmãos...
Ora bolas!
Que cada um faça o que bem entender de suas crenças nos locais apropriados para tal, mas não queiram impingi-las nossas goelas abaixo, porque fazê-lo é uma invasão inadmissível e irritante.
Não mesmo é à toa que Deus prefere os ateus...

blogdojuca@uol.com.br

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Luciana

Há uns quatro meses faleceu uma amiga e eu escrevi em algum lugar que quando morre um amigo ou uma amiga vai junto um nosso pedaço. Um pedaço de vida. Uma experiência que todos passamos em face da sucessão de vidas que vimos findar.


Este pedaço de vida que vai junto com aquele morreu não é algo que se esvai, mas uma semente que permitirá a sobrevivência de quem desapareceu fisicamente. A lembrança que fica entre nós é o que aquela representou a todos nós enquanto viveu.


É será assim que Luciana permanecerá entre nós.


Eu nem me lembro há quanto tempo Aluizio e Luciana casaram. Lembro-me ser bem criança. Lembro-me da parentela subindo a serra, mas nem todos se aventurando em face das dificuldades de vencer a distância entre Morretes e Curitiba. E as “tias” começaram a perguntar quem era aquela tedesca com jeitão italianado, falando e rindo alto.


Sempre brinquei que Aluizio e Luciana saíam para a balada eu me transforma em baby-sitter da Luiza e depois da Luiza e do Neto, os seus dois filhos mais velhos. Depois veio uma seqüência para disputar com tio Jango. Não alcançou, mas chegou perto.


Falar de Luciana é falar de Aluízio e vice versa. Dois primos mais que primos, dois irmãos mais velhos. Quanta coisa teria que contar destes dois e são estas lembranças que farão com que Luciana permaneça presente entre nós que ficamos por aqui.


Luciana tinha muita admiração pela minha mãe. Em 1996 uma escola de Morretes recebeu o nome da minha mãe e as minhas irmãs pediram que eu escrevesse um texto e no dia da cerimônia eu teria que ler o texto. Achei que não conseguiria. Pedi para ela que lesse o texto. Ou melhor, que chorasse por mim. Ela chorou por mim.


Seria muito bom se pudéssemos retroceder no tempo para reviver os momentos bons que vivemos. Aluízio e Luciana são mais que primos, são os meus irmãos mais velhos. Esta presença de Luciana impede-me que me despeça dela. E é isto, tenho a certeza, que marcará a presença de Luciana em Morretes.


Prima, você está por aqui...



(não revisei o texto para não corrigir sentimentos)

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Como e quando vim para São Paulo.

22 de janeiro de 1957. Uma segunda feira. Estava numa fila na porta do almoxarifado da “Base Aérea” do Bacacheri para entregar o fardamento e licenciar-se do serviço ativo da FAB. Havia completado o serviço militar. Chegou a minha vez e o soldado que atendia não encontrava o meu nome. Chamou o sargento, ele olhou para mim e perguntou:

- Cherobim, o que você está fazendo aqui?

- Dando baixa, ora, respondi.

- Não, você não sabe que foi transferido para o Contingente do QG em São Paulo?

- Mas eu não quero ser transferido, quero dar baixa.

- Ah, você agora pertence ao QG. Vá para a Companhia, volte a colocar a farda e esperar a ordem de embarcar.

-

-

Não tive alternativa a voltar a colocar a farda, amarrotada e “retornar à vida militar”.

Eu sabia da transferência. A minha idéia era vender o caminhão o meu pai e comprar um trator Caterpillar D8, o verdadeiro sonho de consumo na época em que se construíam estradas no Paraná.

Antes eu fora aprovado para fazer um curso de cabo em sistemas hidráulicos, no Parque da Aeronáutica, mas vi seu Alfredo Conforto passar na avenida defronte ao quartel e parar num restaurante enquanto esperava o avião para vir para São Paulo. Corri lá e fui passear em Morretes. Perdi o vôo e fui desligado do curso de cabo que nem começara. Consegui entrar no curso de cabos radiotelegrafistas.

No final do curso, eu, Suzuki e Gaertner fomos reprovados no exame de radiotelegrafia. Machado, Skaf e Gumercindo, que já tinham noções de telegrafia foram aprovados e promovidos a cabo. Nós, os reprovados, fomos promovidos a soldados de primeira classe, S1. E os seis transferidos para o QG em São Paulo para trabalharmos no Serviço de Proteção ao Vôo. Os cabos eram engajados por dois anos e os S1 por um ano.

A nossa viagem para São Paulo foi marcada para o início de fevereiro. De trem. Uma viagem que demorava cerca de 30 hrs. De Curitiba a Itararé ia-se pela RVPSC (Rede Viação Paraná Santa Catarina). De Itararé a São Paulo, Capital, pela Sorocabana. Cerca de 30 horas de viagem. Seis “fabianos” viajando de trem. Na verdade sete.

Cigano, digo, Florival, um cabo escrevente da nossa turma, resolveu fazer turismo em São Paulo. Foi na estação se despedir e na hora da partida resolveu embarcar e vir junto. Ele não tinha dinheiro e em passagem. A nossa passagem era uma requisição de passagem da Aernáutica.

Descobrimos que Cigano havia embarcado o dia já estava claro. Resolvemos nos espalhar no trem para que o chefe de trem nunca contasse os sete juntos.

Paraná e São Paulo, naquele tempo, eram dois mundos diferentes. Duas horas e tanto nos velhos DC3 de passageiros, ou na sua versão militar, o C47. Doze horas de ônibus, em estrada de terra, quando não encalhava em ter Apiaí e Guapiara, ou trinta horas ou mais horas de trem, no nosso caso.

Escrevi para Aidê, minha prima, para ir com Rose, uma guria que namorei, para vê-las na estação de Palmeira. Viajar para São Paulo naquele tempo era sem expectativa de volta para passear em curto prazo. Ainda mais soldados com salários de soldados.

Ao chegar a Palmeira, nada das duas. Via a casa de tio Jango lá longe, a serraria de tio Chico, mas próxima da estação. O trem apitou, subi na plataforma e Palmeira foi ficando para trás.

Era madrugada quando chegamos a Itararé. Mudança de administração da estrada de ferro. O chefe de trem da Sorocabana descobriu que a nossa requisição não era de passageiros, mas de carga. Queria que ficássemos ali. Negamos-nos a sair do trem. Ameaçou a chamar a polícia. Pedimos que chamasse, mas teria que se a da Aeronáutica em Curitiba ou em São Paulo. Pós adolescentes marrudos!

Conversa vai, conversa vem, depois de umas duas horas de atraso o chefe de trem permitiu-nos ir até a estação da Barra Funda, na época terminal de cargas.

Chegamos ao QG no final da tarde. Ficava no largo Santa Ifigênia e ocupava o prédio do Hotel Regina, onde houve o famoso crime da mala. O quarto onde foi praticado o crime era o alojamento dos soldados de serviço e dos que ficavam detidos. Nas vezes que fiquei detido nunca vi fantasma nenhum.

Uns vinte dias depois os três cabos (Skaf, Gumercindo e Machado) retornaram para Curitiba e levaram Cigano de volta e os três S1 (Cherobim, Suzuki e Gaertner) foram designados para trabalhar na estação principal de proteção ao vôo, em Congonhas.

Isto há 52 anos! Fui “mandado embora” do Paraná como carga e por aqui continuo.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Minha vida como fotógrafo... xereta

As lojas Dulcal se não foram as primeiras, pelo menos foram umas das primeiras lojas de venda a crediário em São Paulo. Eram lojas que vendiam roupas feitas (outra novidade!) e também  máquinas fotográficas, canetas tinteiros, etc.

Naquele tempo tinha-se que andar de paletó e gravata. Sem isto não se entrava nos cinemas. Não era de bom tom andar de paletó e sem gravata.Década de cinqüenta, quando esta desvairada paulicéia ainda era a terra da garoa, havia a capa e o chapéu de shantung. E galocha! E o grande desejo de consumo era a Rolley. Quem não tinha dinheiro para satisfazer este desejo fotográfico ia de Beautiflex com filme 120. De longe era uma Rolley. Não era pirata, A China estava iniciando o seu Grande Salto sob a liderança de Mao e pirataria, na época, era uma atividade das tripulações de navios corsários.

A sensação fotográfica era a Rolleyflex, as primeiras máquinas reflex ou TLR (Twin Lenses Reflex=lentes reflexivas gêmeas. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Rolleiflex.org/wiki/Rolleiflex). Esta nova tecnologia diminuiu a quantidade de fotografias fora de foco. Até então tínhamos que ter olhos para a distância focal, luminosidade, abertura de diafragma. O resto continuava na sensibilidade do fotógrafo, pois todos os recursos das máquinas eram mecânicos. Os filmes eram tamanho 120.

Os felizes proprietários das Rolley puderam mais tarde adquirir uma máquina com um adaptador para filmes 35mm, então chamados de filmes 135. Podiam usar filmes 120 e 35. O fotograma do filme 120 era 6 X 6cm e as cópias eram por contato.

Em 1957 comprei uma Beautflex, lembro bem. Era uma Rolley genérica. Com filmes 120. Em 1959 trabalhava em Goiânia e o dono de uma loja de fotografia propôs uma troca, a minha Beaut por uma sensação do momento, a recém lançada Yashica 44LM. LM era o fotômetro, light meter. Usava filme 127 e o fotograma 4 X 4 cm.

Nesta época os pobres mortais não conseguiam comprar filmes coloridos. Os pobres quando queriam uma foto colorida, eram fotos ampliadas coloridas, isto é, pintadas a pincel.

Fui para Xavantina com esta minha nova aquisição; começava a ficar dependente do fotômetro, mas não confiava muito pois ele funcionava sensibilizado pela luz e nunca funcionava como queríamos. Não era dependência total.


Em Xavantina havia um local muito bonito, paradisíaco, com um lago onde os evangélicos de Barra do Garça, Aragarças e região realizavam os batizados. Eu me tornei o fotógrafo. Não por ser bom fotógrafo, mas por ser o único.

Quando saiu a minha transferência comprei uma copiadora e kits de revelação, lâmpada vermelha, papel, etc. O básico de um laboratório. Até então eu sabia a teoria, mas nunca havia revelado nenhum filme.

Quando foi tentar revelar o primeiro filme surgiu o primeiro problema: onde? Como? Não havia câmara escura e nem luz elétrica. Transformei o banheiro da estação rádio em câmara escura e ligava o grupo gerador para ter energia elétrica.

A revelação do filme era direto na bacia, sem carretel, sem nada. No dia seguinte, com os filmes seco, fazia as cópias. Eram cópias de contato, portanto 6 X 6cm. Não tinha ampliador.

A copiadora era uma caixa de metal com uma lâmpada. Sobre ela um vidro despolido e na parte superior um vidro transparente e sobre ele uma tampa. O filme era colocado sobre o vidro e sobre ele o papel sensível. Ah, um interruptor. Aí estava o segredo: Testar o tempo segundo a exposição do filme. E também de acordo com a lâmpada, 40, 60 watts, ou velas, como se dizia. Vinte, vinte e um...

Precisei, até,fazer uma copiadeira de caixote,usando o principio a de metal. Fou usado um caixote, comuns naquela época, para embalar duas latas de 20 litros de querosene

Com a prática bastava ver o filme, sabia-se o tempo. Da mesma forma, para se fotografar, sabia-se qual era a abertura do diafragma e a sua relação com a velocidade. Ou regular a abertura no objeto. Se queríamos fundos nítidos ou sem foco.

A fotografia me permitia beber e comprar bala calibre 22 para tirar fundos de garrafa fazendo a bala entrar pelo gargalo sem o quebrar. A Bíblia me dava a grana para gastar em coisas anti-bíblicas.

Quando fui para o Xingu levei uma máquina moderna (para a época), 35mm, profissional, mas toda mecânica. Babei. Esta máquina era do Almir Tolstoi da Rocha Pitta, meu amigo e que não está mais entre nós. Ele fez questão que eu levasse a máquina em agradecimento aos dois litros de cachaça de Morretes, um de cana e outro de banana, especial para levar ao Japão.

Em 1973 saí da FAB e fui para o Amazonas. Comprei o meu sonho de consumo:(de então) uma Minolta SRT-101. Uma máquina profissional e como todos os profissionais de então faziam questão que fosse mecânica. Esta tinha um fotômetro com bateria. E eu me sentia habilitado para tal pois no ano anterior fiz um curso de fotografia para antropólogos no Museu Paulista, ministrado pelo Antônio Macedo, um fotógrafo de etnologia e que trabalhou com Harald Schultz, um fotógrafo que se tornou etnólogo.

Quando fui para o Amazonas, época fértil da Zona Franca de Manaus, adquiri os acessórios que tinha direito. Uma zoom de 300mm, uma lente “olho de peixe” de 70º, uma copiadeira de slides usando o corpo e a lente da máquina. E um laboratório completo. E aqui em São Paulo era o tempo das sessões profissionais da Fotótica e da Cinótica. Trouxe do Amazonas cerca 3.000 slides.

Esta máquina me acompanhou até há uns 10 anos quando me foi oferecida uma outra Minolta eletrônica,modelo 3xi Panorama, com uma lente zoom de 30omm. Foi a primeira máquina de uma mulher; achou que era muito complicada para o que queria. Resolver vender a máquina para adquirir uma digital compacta. As únicas que havia, pré história das atuais digitais.
.

Que máquina complicada! Para mim. Tive que estudar o manual. Na mesma época resolvi adquirir uma digital da Kodak, a LS420. Já havia passado da pré-história das digitais. Custou mais caro que a Minolta. Era o início das máquinas digitais e os primeiros pagam pela novidade.

Escrevi este texto motivado pela notícia de que a Kodak vai tirar da linha de produção o filme kodachrome. Morreu aos 79 anos. Nunca usei, mas quando um produto quase centenário deixa de ser produzido é como uma morte, mesmo para quem nunca usou. Já se prevê para as máquinas analógicas (com filmes) um futuro incerto.


Hoje carrego uma máquina fotográfica no bolso da camisa com uma potencialidade que pouco deve às duas pesadonas analógicas. E cumpre com o objetivo: tirar fotografias a custo quase zero
As máquinas digitais secularizaram a fotografia. Nunca se tirou tanta fotografia como hoje; quem adquire um celular recebe com ele uma máquina fotográfica e as fotografias das máquinas atuais rivalizam com as fotografias com filmes. Se bem que o princípio é o mesmo: os grãos nos filmes, os pixels nas digitais. Mas o que temos hoje resulta de um processo que vem desde as primeiras máquinas, rudimentares, mas as de negativo de vidro. E quando isto acontece, vem junto uma porcão de modificações no mercado. Muitas profissões deixam de existir e surgem outras.

Na década de noventa orientei uma dissertação de mestrado que tinha como tema o fotógrafo lambe-lambe, ou fotógrafo de praça. Estes fotógrafos estavam sendo substituídos na época, por outros, com máquinas polaróides, chamadas de fotografias instantâneas. Desapareciam os arquivos de negativos dos fotógrafos onde era possível acompanhar o modo das pessoas numa determinada época.

Os registros desaparecerão? Hoje ao percorremos os “sites” de relacionamento deparamos com milhares de fotografias. Hoje coloridas e de melhor qualidade porque as máquinas são melhores e mais baratas.

Fica o registro.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Uma reflexão sobre educação

Resumo biográfico de Dulce Serôa da Motta Cherobim
Uma reflexão sobre educação

Fui encarregado, como filho mais velho, escrever algo sobre minha mãe, Dulce Serôa da Motta Cherobim. A primeira dificuldade é a de o filho escrever sobre seus pais, dos quais se sente uma de suas projeções. Este resumo biográfico tornou-se uma reflexão sobre quem escreveu; como filho e como morretense. É difícil separar estas duas coisas. A segunda dificuldade, decorrente da primeira, é escrever suas memórias - e de memória - daquela que o gerou e o socializou. Isto é, tornou-o parte deste mundo social em que vivemos. For fim, acho que uma relação de datas não diria quem foi Dulce Serôa da Motta Cherobim, falecida há quarenta anos. Então, não só como filho, mas como cidadão, procurarei fazer o possível para que a patrona de um grupo escolar não seja simplesmente um nome, mas uma pessoa que viveu a educação e lutou por ela nesta nossa Morretes.

Dulce Serôa da Motta Cherobim nasceu em Guajuvira, município de Araucária em 16 de outubro de 1910 e faleceu em Morretes, em 06 de março de 1956. Pouco antes de completar seu quadragésimo sexto aniversário. Faleceu após sofrer, três anos antes, um derrame cerebral. Deixou-nos jovens. Duas filhas adolescentes, uma pré-adolescente e um filho que acabara de estrear sua vida adulta, o tão esperado “dezoito anos”. Dulce Serôa da Motta Cherobim, apesar de adoecer e falecer prematuramente deixou uma marca de sua vida como pessoa e como professora, lembrada quarenta anos depois de sua morte para se tornar patrona um grupo escolar. Esta homenagem, a meu ver, supera a emoção de sua passagem e ressalta a marca de sua presença entre os educadores de nossa cidade.
Se existir "outro lado” - como muitos acreditam existir - vejo-a encabulada com a homenagem; seu valor era uma questão de vida. Se hoje nós, seus filhos, conseguimos algo em nossas vidas devemos isto à sua retidão de caráter. Posso dizer que seus irmãos, filhos, sobrinhos, netos e bisneta, sentem-se emocionados e orgulhosos com esta homenagem.
Mas quem foi minha mãe? Poucos morretenses atuais a conheceram. Muitos saíram e outros já não estão mais entre nós. Entre os seus últimos alunos, os mais novos são os cinqüentões de hoje. Como os mais novos não a conheceram, vou procurar fazer um breve resumo da sua história.

Notas da sua história

Dulce Serôa da Motta Cherobim era filha de Francisco Serôa da Motta Sobrinho e de Maria Carmela Sentone da Motta. Seu pai, Seu Serôa, nasceu em Mata da Vara, zona rural de Propriá, Sergipe. Ficou órfão ao nascer. Foi criado por uma tia materna até a adolescência, quando foi para Recife, viver com um seu tio, também do lado materno e de quem herdou o nome. Muito jovem sentou praça no Exército, na mesma unidade em que este seu tio (então Coronel Serôa) era comandante. Como primeiro sargento foi incorporado às tropas que se deslocaram para o Acre (Questão do Acre, conflito do Brasil com a Bolívia). Adquiriu beribéri (doença devida à carência de vitamina B1) durante a viagem. Ele e parte da tropa com a mesma doença foram levados ao Rio de Janeiro para serem tratados e à Lorena (SP), e posteriormente Piquete (SP), para convalescerem. Restabelecido, o então Sargento Serôa foi transferido para a Colônia Militar de Xanxerê, em seguida para Curitiba e depois para Foz do Iguaçu. Primeiro a aventura e depois o casamento. No tempo em que meu avô ficou em Curitiba, conheceu Maria Carmela. A viagem de Curitiba a Foz do Iguaçu era feita com tropas de carroções até Guarapuava e daí para frente com tropa de cargueiros. Uma viagem normal demorava entre setenta e oitenta dias. A cada viagem formava-se uma tropa e os viajantes teriam que aguardar alguns meses para isto acontecesse.

Maria Carmela, moça prendada, uma das primeiras alunas do Instituto de Educação, filha del Signore Antonio Sentone, um napolitano que não queria saber de soldados em sua família. Seu apaixonado recebeu um ultimatum: para casar teria que sair do Exército. Saiu. Sua estadia em Foz foi marcada por trocas de cartas apaixonadas que, mais tarde, seus netos puderam deliciar-se em lê-las. De volta a Curitiba, Maria Carmela já era professora, trabalhava em sua primeira classe, num distrito do atual município de São José dos Pinhais. Depois foi transferida para Guajuvira, distrito de Araucária, casada com o agora paisano Serôa. Compraram um carroção e montaram uma fábrica de (refrigerante) gasosa naquele distrito, consumido em Curitiba. O carroção era seu meio de transporte para a família e para a carga.

Seus três filhos (Dulce, Almir e Rubens) nasceram em Guajuvira. Por volta de 1915 soube da possibilidade de se conseguir terras devolutas numa distante Morretes. Desceu a serra, e foi conversar com o encarregado do órgão que tratava dos assuntos fundiários: Seu Elesbão. Foram ver as terras. Ao subir os morros do Pitinga, mio vechio Serôa contava que encontrou, no meio da mata, uma folha de jornal com uma manchete em letras garrafais: "TEU LUGAR É AQUI". Esta manchete o fez viver o resto de sua vida no Pitinga. Minha avó assumiu uma escola do Rio Sagrado, onde lecionou até sua aposentadoria. Foi onde seus três filhos estudaram.

Dulce, minha mãe, em meia adolescência, foi mordida por um cachorro. A falta de recursos em Morretes levou-a a se tratar em Curitiba, onde ficou aos cuidados de sua tia Noêmia (Nia). O seu tratamento coincidiu com o concurso de ingresso para o curso de professoras do Instituto de Educação. Foi aprovada nas primeiras colocações e assim continuou durante todo seu curso. Após se formar conseguiu transferir-se para Morretes, por volta de 1930.

A diretora do Grupo Escolar era Dona Maria Luiza Merkle, com quem minha mãe foi morar, pois os quinze quilômetros que separavam o Pitinga de Morretes eram, então, uma distância considerável. Casou com Guilherme, um oriundo (filho de italianos) do Central. O casamento foi em 1936, lá no Pitinga e a cerimônia religiosa foi realizada numa capelinha que, só para chegar lá, de tão alto, era uma penitência. Casou e foi morar no Central, com suoi suoceri Fiorello (seu Fante) e Luiza. Depois do nascimento de seu primeiro filho meus foram morar na rua de baixo, perto do grupo escolar (que mudou para a rua XV em 1949. O ginásio começou a funcionar em 1949, no prédio onde funcionava o grupo escolar). A segunda filha nasceu nesta casa. Em 1940 ficou pronta a casa na rua do Central, perto da ponte, hoje chamada de “a ponte velha”. Aqui nasceram as suas duas últimas filhas. Foi onde meus pais, Dulce e Guilherme, criaram os seus filhos e viveram o resto de suas vidas.

A professora

Até 1949 o Grupo Escolar era a única possibilidade de escolaridade em Morretes. Era o curso primário com quatro anos, com a opção do quinto ano. Depois daí só em Curitiba ou em Paranaguá. Houve uma época em que foi oferecido um Curso Complementar (este era o nome), em dois anos, que permitia a continuidade aos estudos universitários. Minha mãe era professora do Grupo Escolar e foi responsável por este Curso Complementar enquanto existiu. Foi minha professora no segundo ano do primário.

O primeiro curso primário noturno, para adultos, foi ministrado no final da Rua XV, do qual também minha mãe foi a responsável.

Sua aptidão pelo desenho levou-a lecionar esta disciplina no ginásio (quando voltei a ser seu aluno). O excesso de trabalho obrigou-a desistir destas aulas, sendo substituída pela Profª. Desauda, cujo nome é patrono de outro Grupo Escolar.

A mãe que também era professora

Morretes via Dona Dulce, a professora que sempre se destacou em seu mister. Nós, filhos, não víamos a professora, mas a mãe que também era professora. Antes de tudo era gente. Com defeitos e com virtudes. Hoje, numa análise distante, parece-me que as virtudes superavam os defeitos; as lembranças dos morretenses mais antigos são de carinho e de respeito como pessoa e como educadora. As gerações se sucedem e a nossa memória se esvai.

As reformas educacionais transformaram a escola primária de antigamente e as quatro séries iniciais do primeiro grau como uma fase considerada de menor importância; seus professores, com salários aviltantes, têm que procurar outros meios de sobrevivência, tornando-os impossibilitados de orientar todas as suas inteligências às primeira letras. Minha mãe e tantas outras professoras contemporâneas faziam parte de uma elite intelectual que lhes permitia uma dedicação integral às suas atividades de educadoras.

Nós, como filhos, estamos agradecidos e emocionados em ver o nome de nossa mãe batizando uma escola. Mas ficaremos mais agradecidos e gratificados se pudermos aproveitar este ato como um momento de reflexão acerca da educação de primeiro grau no Brasil. Esta reflexão seria a maior e verdadeira homenagem à educadora que foi Dulce Serôa da Motta Cherobim.
Mauro Cherobim
S.Paulo, 12/10/96

Nota Final: Este texto que compartilho com vocês foi escrito em 1996 quando o nome da minha mãe foi oficializado como patrono de uma escola municipal de Morretes. Estava publicado num blog, mas fui ver, posteriormente, estava incompleto.

Claro que todo filho fica orgulho quando o nome da sua mãe ou do seu pai fica eternizado como nome de uma escola. Ao escrever não pude fugir da emoção, mas o objetivo foi levar o leitor à uma reflexão sobre a educação, comparando-a ao que era meio século atrás e a educação atual. E no momento em que um dos maiores (se não o maior) conjunto universitário do mundo (as três universidades estaduais paulistas) passa por uma série crise política e educacional.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Algumas dicas para ajudar a escrever um projeto de pesquisa

Mauro Cherobim

Toda e qualquer pesquisa precisa de um planejamento. Isto quer dizer que devemos ter muito claro o que queremos pesquisar, como deveremos pesquisar e como deveremos apresentar os resultados. Quem não sabe pesquisar não saberá escrever um projeto; quem aprendeu a pesquisar e não fizer um projeto não pesquisará corretamente, não terá resultados. Não terá objetividades em seus trabalhos de pesquisa.

Isto não significa que devamos restringir a pesquisa ao projeto. Projeto é um projeto: ali stão as linhas mestres que deveremos seguir. A explicação (análise) dos dados terá como parâmetros o projeto e os dados. As hipóteses têm esta função. Quando dizemos: os resultados das pesquisas deverão confirmar ou contrariar as hipóteses, está se fazendo exatamente isto.

O que nos leva realizar uma pesquisa? Poderá ser uma curiosidade científica, pessoal, ou então estar uma teoria. O tema poderá se apresentar ao pesquisador de forma aleatória.

Quando estive na Amazônia tive a atenção voltada à forma de como as idéias dos planos de desenvolvimento do governo federal chegavam até as pequenas comunidades do interior amazônico.

Ao realizar uma pesquisa eu me deparei com um problema metodológico. É muito sério o comprometimento do pesquisador com o seu objeto de pesquisa (o tema que se pesquisa). Este meu comprometimento me levou a duvidar de minhas interpretações aos dados. Resolvi, então, realizar outra pesquisa em que não houvesse este comprometimento para testar a metodologia que estava sendo utilizada e procurar desenvolver algum instrumental de controle para a objetividade das interpretações.

Há casos de encomenda de pesquisa. Neste caso é o cliente que traz o tema. Nas pesquisas de mercado, por exemplo, o cliente quer saber alguma opinião que lhe permita lançar um produto.
Vê-se, por aqui, que chegamos ao tema de pesquisa pelas mais diversas formas. O tema de pesquisa é a idéia principal a ser pesquisada. E é este tema que nos vai permitir escrever o projeto de pesquisa. E, claro, determinar o formato metodológico.

Conhecendo-se o tema de pesquisa precisaremos conhecê-lo em seus detalhes. O tema seria, por exemplo, o(a) pãe. O(a) pãe é o homem ou a mulher que cuida de seus filhos sem a presença do outro cônjuge, tornando-se pai e mãe ao mesmo tempo.

Esta é a idéia principal e precisamos refletir sobre ela[1]. Devemos iniciar a nossa reflexão descrevendo o papel social de pai e de mãe em nossa sociedade. E de filhos. Sobre casamentos, conflitos conjugais, etc.

Como este fato foi largamente noticiado pela imprensa, é aí que vamos encontrar grande parte das informações e poderá nos ajudar a dar os primeiros passos para definir o problema e seguir o caminho metodológico.

Neste tipo de descrição daríamos ênfase a aspectos como as famílias objeto da investigação estão organizadas e em que aspectos elas se diferenciam e se assemelham às famílias normais, isto é, aquelas que têm o pai e a mãe sob o mesmo teto. Como são os papéis da mãe ou o do pai quando assumem o papel do outro cônjuge. E os filhos, como agem nestas circunstâncias?

A imprensa faz parte da literatura descritiva, ou seja, aquela que descreve um fenômenos sem a preocupação de análises mais acuradas, metodologicamente sustentadas. Arquivos públicos, documentos oficiais, literatura atual, etc., compõe este conjunto de documentos descritivos.
Os documentos explicativos são aqueles oriundos de investigações sobre o tema ou temas paralelos. Os dados estatísticos do FIBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - www.ibge.gov.br/) e do SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - Seade – do Estado de São Paulo http://www.seade.gov.br/ ) oferecem informações numéricas sobre o tema.

Temos aqui dois conjuntos de informações que nos permitem ter um quadro geral do tema a ser pesquisado. O que não basta. É necessário que se vá a campo observar este nosso objetivo de pesquisa, entrevistar pessoas envolvidas. Esta atividade é chamada por alguns autores como estudos de situação, survey por outros. Independentemente do nome é o momento em que o pesquisador toma contato com o seu objeto de pesquisa. Se não fizer isto se corre o perigo de não se encontrar o objeto de pesquisa ao se tentar iniciar a pesquisa de campo.

Agindo desta forma conseguiremos formar um quadro do problema. Esta imagem é uma construção que pode se aproximar ou se distanciar do fato concreto que se formará objeto de pesquisa. E nos permitirá elaborar algumas hipóteses de forma que as nossas abordagens se tornem mais objetivas. Uma delas: o pai, ou a mãe, não consegue socializar eficientemente o filho do sexo contrário ao seu. Outra: o processo de socialização neste tipo de família é mais eficiente porque os filhos se tornam mais conscientes de seus papéis de gênero. Mais uma: as condições socioeconômicas das atuais sociedades de massa não são adequadas ao modelo tradicional de família. E por aí vai.

Estas hipóteses deverão se relacionar uma com a outra permitindo um sistema de hipóteses. Deste sistema de hipóteses permitirá planejar que deverá ser pesquisado, assim como delimitar a amostra e responder questões como: (1) a coleta de dados será realizada com os pais, com as mães, com os filhos, algumas instituições etc.? (2) nas capitais ou no interior? (3) Em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Curitiba, em Belo Horizonte? Qual número de entrevistados necessários?
Todas as pesquisas deverão ser factíveis. Para tanto o planejamento deverá considerar dois aspectos principais: o metodológico e o financeiro. Este poderá até se sobrepor ao outro. Mas há outro: condições de acesso aos pesquisados.

O tema, os interesses metodológicos e a amostragem irão determinar quais as técnicas serão utilizadas na pesquisa. Não é um ou outro aspecto que determinará, mas uma conjunção de todos; poderemos utilizar uma ou mais técnicas. Se a amostra for grande poderemos aplicar questionários; se for pequena poderemos realizar entrevistas. Se houver uma boa visibilidade da amostra poderemos realizar observações de forma participante ou não-participante. Poderemos até coletar histórias-de-vida se isto for possível e/ou de interesse metodológico.

A significância da amostra será a sua relação com o universo. O universo é o todo e a amostra é uma parte deste todo que deveremos pesquisar. Nossos entrevistados deverão representar os percentuais do todo. Por exemplo: os percentuais de homens, mulheres, categorias etárias e sócio-econômicas da amostra deverão ser iguais ou aproximados de seus percentuais no universo.

Chegamos até este ponto, mas ainda temos muitas dúvidas a respeito de alguns poucos ou de muitos aspectos. Estaremos no caminho certo quando as nossas reflexões? Uma pesquisa piloto,ou survey, ou seja, um primeiro contato com o tema poderá resolver parte destas dúvidas e mostrar um caminho pelo qual poderemos encaminhar nossa reflexão. E indicar, também, as técnicas mais apropriadas pra a coleta de dados.

As hipóteses terão um papel importante, como comentei acima, para a delimitação da amostra a ser pesquisada. A sua importância vai mais além, pois mostrará quais categorias de entrevistados, ou informantes, poderão responder às nossas indagações.

A mudança social em uma pequena comunidade, por exemplo, afeta a todos os seus membros de maneira mais ou menos igual; numa sociedade de grande contingente demográfico a mudança ocorrerá de forma desigual, não alcançando, até, certos grupos. No caso dos pães parece ocorrer numa determinada faixa sócio-econômica e em sociedades urbano-industriais onde as mulheres têm acentuada participação no mercado de trabalho, dispões de alta escolaridade e são economicamente auto-suficiente. Esta proposição antes da pesquisa fará parte do rol das hipóteses e nos remeterá a pesquisar uma determinada categoria. A elaboração de um questionário (ou formulário) segue por este caminho.

Um questionário divide-se basicamente em duas partes: (1) as informações pessoais do entrevistado (sexo, idade, estado civil, nível de renda, atividade profissional, dados que indiquem situação sócio-econômica, etc.) e (2) opiniões.

Quando se pede a opinião de uma pessoa acerca de algo não significa que ela faça aquilo. Ela pode, até, pensar que faz aquilo; na maior parte das vezes de nossa vida dizemos fazer uma coisa e fazemos outra. Chamamos de comportamento ideal (o que deve ser) o que dizemos fazer e de comportamento real (o que é) o que fazemos. A distância ou a aproximação destes dois tipos de comportamentos indicam o ritmo de mudança em uma sociedade. Precisaremos, então, complementar uma pesquisa com a aplicação de questionários com outras técnicas, como a observação, entrevistas, histórias-de-vida, grupos de debate, etc..

Os resultados colhidos em questionários passarão por codificação, contagens diretas, cruzadas, etc. e, finalmente, uma análise estatística. Os resultados mostrarão um quadro geral e genérico do problema que deu motivo à pesquisa. Claro que nas pesquisas qualitativas, sem aplicação de questionários prescinde-se da análise estatística.

Finalmente chega-se à parte final da pesquisa com a redação de um relatório e, por último, a interpretação final dos dados.

Uma pesquisa importa em custos. Nem sempre o pesquisador tem condições de arcar com os seus custos devendo recorrer a fontes de financiamento. No caso das pesquisas acadêmicas poderá se socorrer às instituições de fomento, como a FAPESP, CNPq, Fundação Ford, etc., e nas pesquisas de mercado são os clientes que arcarão com os custos. Os recursos financeiros determinarão o “tamanho” da pesquisa, que poderá aumentar ou diminuir se os recursos forem maiores ou menores do planejado. Geralmente há diminuição.

As demais partes do projeto, escritas na ordem a seguir, serão as indicações bibliográficas, as conclusões e a introdução. As indicações bibliográficas deverão ser escritas de acordo com as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) quando escritas no Brasil. As conclusões são comentários finais que têm como objetivo fazer uma avaliação de pontos considerados pelo autor como fracos ou controvertidos. No caso de relatórios de pesquisa comenta os resultados, ressaltando a sua contribuição para a área de conhecimento à qual a pesquisa foi realizada. A introdução é uma apresentação do trabalho. Deve ter um caráter didático, onde se procura mostrar o que o autor pretendeu realizar no decorrer do seu trabalho e como o realizou. Por isto deverá ser escrito depois do trabalho pronto (escrito).

[1] Este texto foi escrito no início da década de noventa quando a imprensa deu destaque à quantidade de homens e de mulheres que cuidava dos seus filhos sem a ajuda do outro cônjuge.