quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A vida, a morte e as visagens.




Todos (ou quase todos) os povos constroem um mundo sobrenatural paralelo e complementar ao mundo natural ou físico em que vivemos. O mundo sobrenatural é construído como um modelo e uma explicação deste nosso mundo. Lá está aquele que “nos criou”, o nosso herói civilizador, que no nosso mundo ocidental chamamos de Deus. Criamos um mundo sobrenatural para que explique o que antecede e o que sucede a este nosso mundo natural.


Os índios guarani, por exemplo, dizem que quando nasce uma criança ela “é governada” por um espírito telúrico. A partir do momento em que começa a compreender o mundo em sua volta, significa que uma alma divina, Ñé é, a fala, começa a se manifestar, “tomando conta do corpo”.  Quando o indivíduo morre o espírito telúrico (Angüery) fica por aqui e a alma divina volta de onde veio. A sua volta, porém, é cheia de peripécias, como uma corrida de obstáculos.

Há até uma encruzilhada, reedição do caminho largo e do caminho estreito da crença de algumas denominações evangélicas cristãs. O caminho largo é o caminho da “perdição” e o estreito da bem-aventurança. Há um “guarda” para dizer qual caminho deve ser tomado. É a ideia da dualidade da alma.

O que interessa para nós é a crença de que o mundo natural (ou físico) é povoado por seres não naturais, habitantes de um dos inúmeros níveis do mundo sobrenatural. Aqui, a dualidade mundo natural, ou profano, e o mundo sobrenatural ou sagrado. Os seres não naturais são classificados desde os mais impuros, as  almas penadas, até os mais puros, relacionados com o paraíso, onde está Deus, foco principal das crenças.

Mary Douglas, uma antropóloga britânica nos ensinou que o corpo é a metáfora da sociedade. Construímos a nossa sociedade a partir das nossas compreensões a respeito do nosso corpo. Da mesma forma, podemos dizer que o mundo natural é a metáfora do mundo sobrenatural. O que temos aqui tem lá de forma organizada.

O nascimento e a morte são os pontos de contato entre o mundo natural e o mundo sobrenatural (ou sagrado), respectivamente de alegria e de tristeza. Estes momentos são conceituados e re-conceituados teologicamente pelas mais diversas denominações religiosas, como tentativas de uniformização de ideias religiosas.

A morte é o nosso grande problema. Cada um de nós é uma dualidade: ser biológico e ser social. O ser biológico é o que fenece; o ser social sobrevive. Continua sendo o pai, a mãe, o filho, a filha, o historiador, etc. Segundo as nossas crenças quem sobrevive é a alma. Ou melhor, a imaterialidade sobrevive ao corpo e vai viver no mundo sagrado.

Este mundo sobrenatural – o sagrado - é obra nossa e temos para com ele uma atitude dúbia e contraditória: ao mesmo tempo em que nos consideramos suas criaturas, agimos como se o mundo sagrado fosse nossa criatura. Criamos rezas, ritos, etc., para sujeitá-lo e moldá-lo aos nossos interesses. Criamos as nossas crenças e elegemos representantes para que nos defendam delas. Como a complexidade do mundo é muito grande e vai além do conhecimento para ordená-lo, passamos a considerar como uma manifestação do mundo sobrenatural tudo aquilo que acontece e não conhecemos.  

Elegemos locais de segurança e locais abertos às manifestações sobrenaturais.

As Igrejas, que reúnem os administradores das relações (padres, pastores, etc.) entre estes dois mundos, são locais seguros. Valdinho contou que um dia foi abrir a igreja, escutou barulhos e correu para o Pe. Camargo:

 - seu Padre, tem fantasmas atrás do altar!

 - Ora, meu filho, fantasma não entra na casa de Deus, respondeu o Padre no seu mais alto saber teológico. Eram ratos, disseram-lhe.

Os espaços do lado de fora da Igreja são os espaços de livre manifestação dos fantasmas...  

Os fantasmas, contam os entendidos, têm uma fisionomia esquelética. Uma vez eu vi um homem com fisionomia de fantasma. Estava defronte à porta da torre. Foi logo após de ter quase incendiado um altar. Seria castigo? Mas do lado de fora da igreja. Disseram-me depois que era um tuberculoso. Nunca mais o vi. Será que alguém viu o “fantasma” que eu vi? Ou será que eu vi algum fantasma?

Os fantasmas não andam sob a luz do sol. Começam a aparecer quando o sol ultrapassa o poente. Meu pai foi muito namorador, mas deixava claro que isto era antes de conhecer a minha mãe. Tinha uma namorada no Porto de Cima (distrito de Morretes) e voltava antes da velinha aparecer na reta (de 6 km que libava o Porto com a cidade).

Numa determinada noite a eguinha estava passarinheira. Nunca fora. Era rápida e boa de raia. Não havia parelha para ela. Mas naquele dia não sentia as cócegas das esporas e começava corcovear. Até que ele viu a vela acesa seguir o seu rumo. Nem sei se ele deixou de namorar no Porto, ou mudou o horário para não andar à noite.

...

O cemitério é um local aberto e livre para as manifestações fantasmagóricas.

O cemitério de Morretes foi iluminado e não havia fantasma que se atrevesse a aparecer com tantas luzes. Agora nem tanto, pois roubaram alguns holofotes. Bom para alguns fantasmas aparecerem.

Valdinho contou no almoço dos adolescentes do início da década de 50, que o filho de um nosso amigo comum, foi ao Central e voltou ao anoitecer. No lusco-fusco, acabou a gasolina defronte ao Cemitério. Ao descer do carro olhou para trás viu uma fantasminha pré-adolescente dentro do cemitério, com o rosto encostado nas grades, olhando para fora. Quando ele ia iniciar a carreira, deixando carro e tudo mais para trás, notou que a menina não era fantasma, mas acompanhante de um grupo de umbandista que fazia despacho no cruzeiro. O cruzeiro é uma cruz no centro do cemitério onde as pessoas ascendem velas para as almas e para os seus santos de devoção.

O rapaz recomendou que antes de correr procurasse  observar se havia motivos para uma desabalada carreira...

Mas nem todos têm tempo para isto. Foi o caso de Hamilton Faria desandou a correr de uma “visagem”. Mas também não era fantasma. Marquinhos costumava ir ao cemitério à noitinha quando chegava de Curitiba. Horário que Hamilton voltava da Usina, onde trabalhava. Em uma de suas passagens foi abordado por alguém que lhe “pediu fogo”. Era para acender as velas para poder sair do cemitério. Até então nunca correra com tanta velocidade. Era uma das brincadeiras de Marquinhos.

Como vemos, nem sempre há tempo para conhecer os motivos. O medo de visagens é maior que tudo. Beta que conte.

Eu fui criado no início da estrada do Central, que alguns chamavam de Rua do Cemitério. As mulheres das cidades pequenas colocam a ida ao cemitério como uma das suas obrigações semanais. Para evitar a canícula morretense iam bem cedo ou à tardinha. Nós, moradores da rua, conhecíamos o horário de cada uma delas. Beta ia à tardinha.

O perigo para as visitantes da tarde era não sentir o tempo passar e o zelador fechar o cemitério. Naquele tempo, as únicas luzes do cemitério eram as velas deixadas pelas beatas ou o fogo fátuo. E como os fantasmas gostam de se manifestar no escuro...

As visitantes costumeiras tinham uma “rota de fuga”: os ferros soltos do gradil do cemitério para o caso de o zelador fechar os portões do cemitério.  Beta, ao invés de usar esta “saída” preferiu sair pela fresta deixada pela corrente que fechava o portão. Ficou presa. Já havia escurecido e com a roupa presa não conseguia se movimentar. Quando ouvia passos ou via algum vulto de passantes, pedia socorro.

- por favor, me tire daqui... Estou presa, quero sair daqui dentro!...

Quem ia se aventurar a soltar um fantasma? “Pernas para que te quero” era a senha para a corrida.

Cansada e amedrontada, com a sua voz enfraquecida, seus apelos se confundiam como a voz das almas penadas. Todas as mães que se prezam imitam a voz de alma penada para aquietar os seus filhos. Assim, quando as pessoas ouviam Beta pedir para sair do cemitério, com a voz já enfraquecida, fugiam em desabalada carreira.

Beta era tida como a cronista da cidade. Do seu posto no peitoril da janela, sabia o que acontecia em Morretes. Naquele entardecer Beta não apareceu na janela, como era seu costume. O que acontecera? Saíram à sua procura. Lá pelas nove da noite encontraram-na presa no portão Cemitério.

Por que não pediu ajuda de alguém, perguntaram-me? Eu pedia, mas os lazarentos saíam correndo. Nem uma alma de Deus me ajudou a sair...

O medo das almas penadas, de fantasma é muito grande.

Obs: No sábado, dia 16, data do centenário de nascimento da minha mãe, fui ao cemitério e passei pela sepultura de Beta. Resolvi republicar este texto em homenagem à ela, e com ela  relembro todos os parentes, amigos e conhecidos que nos deixaram.

sábado, 16 de outubro de 2010

Morretense paranalista



Fiquei três anos e dez meses sem ir a Morretes. Tenho um compromisso com os amigos – ou melhor, é um compromisso nosso – de formatura do ginásio de nos encontrarmos em dezembro para um almoço. Duas vezes proibido pelo trabalho e da última vez pelo médico. Mas agora com chuva ou vento, nem que chovesse canivete viria. Se minha mãe fosse viva completariam 100 anos neste 16 de outubro. No dia 14 de agosto foi o centenário de nascimento do meu pai.

Gosto de escrever sobre Morretes. Por diversas vezes chamam-me de saudosista, talvez por um menosprezo pela história, ou talvez por temor pelo tempo que passa. Falando dos que nos antecederam estaremos falando de nós mesmo, da nossa matéria-prima social. Somos seres que vivem uma história.

Quem vive em Morretes vê a sua história passar sem se dar conta dela, a não ser quando levam alguém à sua última morada. Eric tem me avisado: hoje fomos enterrar... enterrar alguém que viveu e teve uma história.

Morretes é o meu território. Esta gente que viveu comigo e que vive quando retorno para lá e o mundo físico em que vivemos constrói na memora de cada um uma imagem. Quantas vezes ao olhar o céu de São Paulo, ou o sol encoberto pelas nuvens, eu me pego “vendo” Morretes. E me sinto em Morretes quando vou a Boracéia ao olhar para as montanhas encobertas pelas nuvens e logo depois despidas delas, como se fossem as serras às eu me acostumei a ver desde pequeno.

Vou ao cemitério e lá estão as tumbas que guardam os restos mortais do meu pai e da minha mãe, de nonno e de nonna, do meu avô e da minha avó, dos meus tios e tias, dos meus tios avós e minhas tinhas avós. Vejo neles a minha ascendência, a minha história.

Nos meus retornos por vezes vejo este território como se fossem capítulos da minha história, cada capítulo um pouco diferente do anterior. Vejo pessoas que não conheço e que sou um desconhecido delas.

Certa vez eu comentei num dos meus textos a “queixa” de Adaulino: onde está a minha Morretes? A Morretes dele guri, que foi a minha Morretes. A nossa Morretes está na história. De quando ir a Curitiba era uma viagem e ir a São Paulo que precisava se despedir de todos os parentes e amigos.

Minha irmã comentou, nesta minha chegada, de “como é bom viver em Morretes”: as pessoas organizam excursões, fazem viagens turísticas de navio e em outros lugares turísticos. Organizam-em grupos de primeira, segunda e terceira idades e logo de quarta idade.

E aqui estou. Mas terei que voltar logo, pois a vida fez-me construir uma vida em outras plagas. As obrigações me chamam. Eu acho que me tornei um morretense “paranalista” uma mistura de paranaense e paulista, apesar do meu ¼ de vida paranaense e ¾ de vida paulista, mas foi em Morretes que eu vi o mundo pela primeira vez.