sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Recordações sem começo, meio e fim

Tio Jango sempre falou muito alto. Quando eu e Carlito viajávamos com o caminhão de papai íamos para Londrina via Palmeira, ao invés de irmos pela Estrada do Cerne. Passávamos pela fábrica cumprimentar tio Chico e os primos. Algumas vezes escutávamos tio Jango falar, até da sua casa, a primeira casa. Elói brincava: “Jango está cochichando!”. Se ele cochichava com altos decibéis, imaginem falando alto.

Nonno gerenciava o engenho do Central e tio Jango assumiu este trabalho após o falecimento de Nonno. E lá havia uma locomove que fornecia luz para Morretes. A luz era tão fraca que muitas vezes era preciso acender um palito de fósforo para ver se a lâmpada estava acesa.

A locomove era uma caldeira que girava uma polia que fazia girar o gerador de eletricidade. Era barulhenta e tio Jango todas as noites ia jogar “três sete”, ou “21”, com o guardião do engenho que também cuidava do bom funcionamento da locomove. Precisavam conversar aos gritos. Esse era o motivo, diziam os irmãos, de ele falar tão alto.

O “três sete” era o jogo preferido dos amigos no Central. Tio Juca mantinha um consultório em Morretes, onde atendia nas segundas e terças feiras. “Descia” pelo domingo pela manhã pelo expresso ia para nossa casa para almoçar e em seguida, com papai, iam para o Central. Lá se reuniam com tio Jango, tio Tonico que de inicio morava num dos sobrados, ao lado do sobrado em que morava tia Maria Sotta Malucelli, irmão de Nonna (mais tarde ele construiu a casa na reta do Porto de Cima). Também eram parceiros os irmãos Tonico e Jango Valério. O outro parceiro certo era o Sebastião Malucelli, filho de tia Maria. Depois de Sebastião construir uma casa e se mudar para a Vila Santo Antonio, Giocondo Malucelli, filho de tia Felícia e tio Joanim, passou a ocupar a casa e assumiu a vaga deixada pelo Sebastião.

Havia um paiol ao lado da casa. E era onde estava a oficina de selaria de tio Jango. Dos filhos de tio Jango, pelo que eu me lembro, foi Beto que herdou a habilidade de seleiro. De fazer peças de arreio e também, de consertar. Enquanto Carlito passou a se interessar por caminhões, Beto ase interessava por carroças. Lembro-me da sua carroça de quatro animais, dois cavalos na frente e dois burros atrás. O bom carroceiro tinha que ter um bom chicote para estalar sobre os cavalos, que obedeciam aos estalos...  e sem acertar nos cavalos. No final do chicote, de couro, havia um pedaço de corda para dar o tom do estalo. Como morávamos no início da estrada do Central, sabíamos quando o Beto passava por lá.

Relembrando os estalos dos chicotes, quando trabalhei com o caminhão de papai fiz um apito e coloquei na saída de ar do freio. Deu trabalho em acertar, com um lima, um silvo que “fosse o meu”. Os primeiros motoristas, da geração anterior à minha, antes foram carroceiros.

Enquanto os homens jogavam “três sete” as mulheres se reuniam na estrebaria. Nonna era uma verdadeira mamma. As suas noras eram como se fossem filhas e os seus netos como se fossem filhos. Quando a minha mãe adoeceu, nonna assumiu a casa e “nos assumiu”. A estrebaria e o galinheiro da casa de tio Jango eram, na verdade, de nonna. Também “era dela”, o galinheiro que ela fez papai construir em casa. Todas as manhãs ela ia ao galinheiro (ou quando chegava em casa) fazer um “fio terra” nas galinhas para ver se tinha ovo. Se tivesse era separada para não chocar, ou para chocar, se houvesse interesse.

A estrebaria ia além do local de acolher as vacas para “tirar leite”. Era onde estava o tacho que era usado para fazer sabão. A potassa era guardada numas tábuas próximas ao telheiro. Certa vez a potassa caiu sobre a cabeça de  Lolinha, esposa de Giocondo. Ela, recém chegada da cidade, ao invés de tirar a potassa “ao seco”, lavou a cabeça. A reação da potassa com a água queimou o coro cabeludo e a sua recuperação e volta dos cabelos foi muito demorada.

Nonna era um tanto estouvada. Era canhota. O canhoto tende a ser “estouvado” porque vive um mundo destro. Trombava com pés de cama e de mesa, tropeçava e isto a deixava um pouco “desligada”. O Padre de Morretes rezava a “missa das almas” às quatro da manhã das segundas feiras. Nonna era frequente nesta missa. Costumava vir para casa no domingo a tarde, mas algumas vezes saída do Central por volta das três da manhã para assistir a missa. Certa vez ela encontrou um homem quando passava pelo cemitério e vieram conversando até na entrada da cidade. Na volta da missa comentou intrigada e zangada da falta de educação do homem que sumiu no meio da conversa sem se despedir. Minhas irmãs ficaram arrepiadas, pois achavam que o homem era um fantasma de algum morto do cemitério.

A missa das almas era comum e frequentava geralmente por mulheres de meia idade para cima. Na Igreja do Bom Jesus, em Curitiba. Tia Angelita acordava-me de madrugada para acompanhá-la à missa. Numa das vezes a Igreja estava fechada e no portão havia uma placa informando que a missa, naquele dia, seria rezada na capela do Colégio São José, do outro lado da Praça. A pessoa que nos recebeu apontou para o final do corredor e disse: a capela fica no final da aquela escada. Só que a capela fica no penúltimo lance da escada; no último lance era o dormitório de um pensionato de moças. As moças, naquele tempo eram muito pudicas e ainda bem que eu estava atrás da minha tia.


Propositalmente deixei este texto sem começo, meio e fim; as recordações são aleatórias e sem começo, meio e fim. Como é a nossa memória.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Festa dos padroeiros das capelas e a banda Euterpina

Eric Hunzicker, o historiador de Morretes, publicou uma descrição da festa de São Pedro, que me transportou aos meus tempos de coroinhas no tempo do Padre Camargo.

Eu e Valdinho Colodel éramos os coroinhas (sacristão, como então éramos chamados) do Padre Camargo. Tínhamos, então, por volta de 13 ou 14 anos. Éramos excelentes profissionais (desculpem-me a imodéstia) e isto nos garantia privilégios que tínhamos nas aulas de latim no ginásio, ministradas pelo Padre.

Nas festas de São Pedro, como em outras capelas, o Padre ia de charrete, conduzida por Valdinho. Claro, neto de seu Lourencinho, ferreiro antigo de Morretes, exímio colocador de ferraduras nos cavalos da cidade.

Numa festa no Rio Sagrado, Jairo, sobrinho de dona Sebastiana insistiu em ir junto. Dona Sebastiana tomava conta do posto Telefônico e Jairo era o seu estafeta; corria a cidade para chamar as pessoas para atender telefonemas no posto, na pracinha do paredão (estou usando a toponímia da época). Vivia cansado.

O Padre era madrugador. Saíamos ainda escuro, pois rezava uma missa às sete e antes da missa havia um opíparo café na casa do festeiro e/ou capelão. O almoço era um banquete, dentro das possibilidades locais. Padre Camargo sentia-se o lídimo representante de Deus em Morretes. Bem diferente do Padre Saviniano que o antecedeu, a expressão da modéstia.

A prima Sirley Malucelli, sobrinha da Beta Grossi, costureira de mancheia e pesquisadora da vida alheia local[1], resolveu fazer um chapéu novo para o Padre Saveniano para usar numa reunião em que como pareceriam padres de Curitiba, Paranaguá, Antonina e outras cidades próximas. Como era costume na época, os padres iam chegando e colocando os seus chapéus na chapeleira. E lá estava o chapéu novinho em folha, presente da Beta. No término do encontro, cada padre pegou o seu chapéu e retornou para a sua paróquia e um deles com um chapéu novinho em folha. E lá ficou um chapéu em pior estado daquele que Beta substituiu.

Voltando à festa do Rio Sagrado. Saímos pouco antes das quatro da manhã. Escuro. O Padre e Valdinho (o condutor) na charrete, eu e Jairo de bicicleta. Quando estávamos no alto do Morro Comprido senti falta de Jairo. Avisei o Padre e voltei. Saindo de Morretes, havia uma subida, uma descida e em seguida a subida maior. Embalávamos a bicicleta na primeira descida para subir com folga na subida maior.  Jairo dormiu na descida e caiu num jasminzal. Acordou sem saber onde estava sem apoio para se levantar, eu o descobri pelos seus pedidos de socorro.

Dona Helena Cit Cordeiro lembrou-se da “Banda dos Coroas”, paixão de Ewaldo Zilli, que hoje nos observa do outro lado. No meu tempo de guri em Morretes o nome da banda era Euterpina, uma homenagem a Euterpe.

Segundo o “Santo Google”, Euterpe, a Doadora de Prazeres do grego eu (bom, bem) e τέρπ-εω ('dar' prazer), foi uma das nove musas da mitologia grega, as filhas de Zeus e Mnemósine, filha de Oceano e Tétis.
Era a musa da Música. No final do período clássico, foi nomeada a musa da poesia lírica e usava uma flauta. Alguns consideram que tenha inventado a aulos ou flauta-dupla, mas a maioria dos mitólogos dá crédito a Marsyas.




[1] Eu já contei aqui de quando Beta ficou presa na porta do cemitério. Já estava escuro, quando ela pedia socorro as pessoas fugiam pensando que fosse alguma alma penada querendo sair fora dos muros do campo-santo.

sábado, 6 de setembro de 2014

A saga do paciente

Na sexta feira após o carnaval de 2009 o meu coração deu um susto. Fui ao hospital, colocaram-me numa cadeira de rodas e me levaram direto para o setor de emergência. Colocaram vários eletrodos no meu corpo, a cada meia hora vinha uma moça com um carrinho e fazia um eletrocardiograma. Não tinha nem botões para perguntar a eles se eu emplacaria o sábado. Três ou quatro médicos não saíam do lado da cama. Preocupante! No final disseram que seria bom que eu fosse à UTI. “O senhor aceita?”. E se não aceitar? “Ah, não nos responsabilizamos”. Então tudo bem. Vamos lá. Minha filha, como não podia ser diferente não teve nem tempo para ficar apavorada, correndo com a burocracia junto ao convênio para autorizar a internação. Mas os seus olhos demonstravam a sua preocupação.

Deixaram-me durante o sábado e domingo na UTI. No sábado à noite falei para a atendente que eu queria tomar um banho. Ela se ofereceu a me lavar. Não aceitei. Queria um chuveiro. Perguntou se eu aguentaria. Se eu não aguentar você me traz de volta, sugeri.

Trouxe uma privadinha de rodas, fez-me sentar e me empurrou até o banheiro. Todos os internados ficam com uma peça de roupa que chamam de camisola que tampa a frente e deixa a bunda de fora. O local em que fiquei era de passagem e cansei de ver passagens de bundas naquela privadinha de rodas. Até que chegou a minha vez. Lá fui eu.

A moça era muito bacana, responsável. Abriu o chuveiro, esperou a temperatura certa, colocou uma toalha no chão e avisou que podia tomar o banho. Afastou-se um pouco e ficou de braços cruzados próximo à porta. Fechada.

Você vai ficar aí? O senhor está com vergonha? Bem, não é propriamente  vergonha, mas nunca tomei banho com audiência. Eu posso sair, e se o senhor cair? Tudo bem, então pode ficar aí.

Eu banho gostoso! Deve ter ajudado para sair da UTI. Mas ainda fiquei monitorado por mais vinte e quatro horas por aparelhos.

Na segunda feira fiz alguns exames e na terça fui fazer um cateterismo. É impressionante. Colocam a criatura numa maca mais estreita que o corpo. Sem lugar para colocar os braços. A máquina fica presa no teto por gigantescos parafusos. Se a máquina se soltar amassa o paciente. E eu pude entender o sentido da palavra paciente.

Começaram os preparativos. Até que senti uma coisa fria na virilha direita. Perguntei para a enfermeira o que era aquilo. Ela me falou que era tricotomia. Ela deve ter se assustado com a minha interrogação, pois foi um susto danado.

Há uma discussão teológica desde os primeiros séculos da era cristão a respeito da unicidade do homem, ou se ele era dividido em partes: corpo, alma e espírito. Os guarani têm um entendimento semelhante que costumamos nos referir à duplicidade da alma. Ñé é, que corresponde ao que chamamos de alma, é o angüery, um espírito nos moldes que chamamos visagem. Ñé é vem de um lugar semelhante ao que chamamos de céu e se manifesta quando a criança começa a entender o mundo que a rodeia. Quando a pessoa morre ela retorna de onde veio, uma espécie de  terra sem males. E o espírito ou anguery, fica zanzando por aí, por vezes “atentando” as pessoas, outras vezes ajudando.

A isto os teólogos chamam de tricotomia. Mais recentemente surgiram interpretações teológicas da dicotomia, corpo e alma.

Depois do meu susto ela me explicou que tricotomia (na medicina) significava depilar. Eu não sabia que deste a metade da adolescência praticava tricotomia no rosto, quase que diariamente.

Refeito do susto, a enfermeira “me preparou” e no final chamou o médico. E ele começou a fazer o cateterismo. Até que ele avisou: descobri o seu problema: uma obstrução de 80% numa artéria do coração. E daí, perguntei, o que é que significa isto? Tem que colocar um stent para abrir a artéria. Quer fazer isto agora ou outro dia? E tem que operar? Perguntei. Já fiz a primeira parte da operação. Ah, então faz isto já. E mandou esperar.

Foi procurar a minha mulher explicou tudo para ela e talvez alguma coisa a mais, pois ela estava apavorada. Vi depois. Ela teve que assinar uma papelada e a colocou frente a um vídeo para acompanhar o procedimento.

No final me tiraram daquela maca e me colocaram numa outra, a que vim do quarto. Deixaram-me numa sala de recuperação e recomendaram que eu não deveria me mexer nas próximas seis horas.

Seis horas depois chegou a enfermeira trocar a bandagem. Enquanto ela fazia o seu trabalho falou “empurre isto para lá”. Eu não entendia, pois não sabia o que era “isto”. Depois de ela muito repetir entendi que era o saco.

É melhor “isto” do que escroto. Palavrinha feia!

sábado, 23 de agosto de 2014

Morretes, os sinos e os sineiros (*)

Cada vez que chego a Morretes, sinto nos meus ouvidos os sons dos sinos da matriz: quando tristes, entristeciam os morretenses; quando alegres, alegrava a todos.  Cada “música”, isto é, cada batida, identificava uma atividade religiosa, mas também havia uma batida para a comunidade.
Sou de uma geração que nasceu e se criou ouvindo os sinos da Igreja Matriz. Eu fui um dos sineiros da Igreja.
Na torre da Matriz havia quatro sinos, numerados do menor ao maior, em primeiro, segundo, terceiro e quarto. Cada sineiro se especializava num deles. Os primeiro e segundo sinos eram os “de repique” e eram tocados por um só sineiro e dava o ritmo e o quarto fazia um acompanhamento, surdo, e era o responsável pelas e emoções. Pelas tristezas e pelas alegrias. O terceiro intermediava o “diálogo” dos sinos menores com o “solo” do quarto. Neste momento a cidade ficava alerta: alguém havia falecido. Quem? Logo a notícia se espalhava. E assim as batidas anunciavam um acontecimento, uma atividade. Era a forma de como as informações chegavam aos moradores de uma cidade com cerca de cinco mil habitantes.

Quem eram os sineiros? Eram meninos no início da sua adolescência. Coroinhas. Sacristãos, como eram chamados.  Mas não eram todos que ficavam com a chave da porta da torre, como não era qualquer um que “tocava sino”. Para tal, teria que ter a autorização do responsável, alguém de confiança do padre. Ou do capelão, caso do Roberto França, na igreja de São Benedito.

Os mais experientes treinavam os novos. Os antigos, já adultos, eram citados como exemplo pelos “instrutores” aos aprendizes. Os mais citados, na época, eram Osman de Oliveira e Airton Onoles. Havia o Ari Bicudo e alguns que no momento não lembro outros nomes, mas sempre havia uma dupla ou um trio. A dupla que mais se destacava era a “especializada” nos dois sinos menores e no maior. Por muito tempo eu fiz parceria com Valdinho Colodel. Ele nos dois menores e eu no quarto sino. 

Osman e Airton, até onde alcança a minha memória, foram os últimos coroinhas (sacristãos) do Pe. Saveniano. Eu e Valdinho fomos do primeiro grupo de coroinhas do Pe. Camargo. 

Relembrando, a partir de hoje, o Pe. Camargo fez  tudo para apagar da memória as lembranças do seu antecessor.  

Os coroinhas tinham outras responsabilidades na Igreja e por isto eram os que mais se destacavam como sineiros. Não sei nas gerações passadas, mas o padre nos remunerava. Também éramos sineiros da Igreja de São Benedito, que tinha como capelão o Sr. Roberto França.

Muitas vezes a dupla estava livre para bater sino. Quando somente um batia o sino, repicava os sinos menores com as mãos e o maior com a corda do badalo amarrada num dos pés.

A sonoridade antiga que sinto nos ouvidos contrastava com a batida monocórdica atual. Numa das minhas visitas a Morretes convidei Valdinho para transmitirmos o nosso conhecimento para os meninos e meninas atuais. Não foi possível porque, segundo lhe informaram, havia mais de um sono rachado. Deitado de costa no chão da torre, é claro.

Faço um convite aos morretenses para arrecadar fundos para recuperar os sinos; eles são da comunidade. Não sei se este convite ainda tem significado sete anos depois que publiquei este texto.


(*) – Publicado, originalmente, em Morretes NotíciasEdição nº 2, janeiro de 2007.

Lampejos de memória

Lampejo, diz o dicionário, é uma manifestação rápida e/ou brilhante duma ideia; (..) um clarão ou brilho repentino; (uma) faísca, fagulha, centelha, chispa”. Lampejo de memória é aquela lembrança rápida, clara como uma centelha, rápida como uma faísca. Eu tenho estes lampejos de memória de nonno.
 
Eu tinha três anos, nove meses e cinco dias quando nonno faleceu. Muito pequeno para me lembrar dele, mas estes lampejos são desta idade para menos. Para que estas lembranças ficassem marcadas nonno deve ter sido muito importante para mim.
 
Ele e nonna cederam o quarto deles para os meus pais morarem lá na época da gravidez de minha mãe; ali nasceria o primeiro filho do filho caçula. Nonno levava a minha mãe para cidade para lecionar e voltava buscá-la. Estes foram os meus primeiros momentos de vida ao lado dos meus avós paternos.
 
Há um lampejo, acho que o de menor idade, em que eu estava na charrete (ou “aranha” – uma charrete com rodas de madeira e aro de ferro), sentado entre nonno e a minha mãe, saindo da estradinha do engenho do Central, entrando na estrada principal, que nos levaria à cidade. O cavalo assustou-se por alguma coisa, saiu da estrada. Minha mãe gritou e ele disse: “Não se assuste, Dulce. Não foi nada”. Corte! Um corte que veio até hoje.
 
Num outro lampejo eu entrava na sala de jantar e nonno estava sentado numa mesa redonda, pequena para a sala, com uma pequena tigela com vinho; ele picava pão e mergulhava no vinho. Não sei se foi ele que falou que havia vinho na tigela. Bem mais tarde, já adulto, falando a respeito com o meu pai, ele me falou deste hábito de nonno, de fazer sopa de pão com vinho numa pequena tigela.

 Um dos lampejos aconteceu na casa construída pelo meu pai e que existe até hoje. Nonno já demonstrava estar doente. Eu estava sentado na escada da entrada da varanda, chegaram ele e nonna que iam da cidade para o Central. Pararam defronte de casa. Demonstrando fraqueza, Nonno desceu da charrete, mas não se atreveu subir os degraus da varanda. Ficou conversando comigo apoiado na sua bengala. O lampejo termina antes de nonna sair para retornarem ao Central.
 
Num outro lampejo eu me vejo no quarto dele, doente e de cama. Uma visão rápida.

 Numa manhã, o meu primo Carlito, filho do tio Jango, chegou em casa. Ele deveria ter uns 10 ou 11 anos. Falou alguma coisa e meu pai se apressou em se arrumar e me arrumar. Pegou a ramona (Chevrolet Ramona de 1927), um caminhãozinho com cabine de madeira e sem portas. Sentou-me no banco e falou para que Carlito ficasse no para-lama, fechando a entrada da cabine. Não me lembro se a minha mãe já havia ido ou foi depois.
 
Havia movimento na frente da casa e um ataúde no centro da sala da frente. Colocaram-me no colo, acho para o ver o nonno pela última vez, mas eu não me lembro de o ter visto. Vi algo que não parecia ser ele. Há um pequeno corte e me vejo sendo colocado no colo de alguém na janela. Dali pude ver o féretro na estrada, ao longe. Houve uma sensação, não sei se daquele momento, ou uma sensação que cresceu com a idade, de algo que perdia; de uma última visão. É uma lembrança acompanhada de um nó na garganta e de os olhos quererem marejar. 

O meu avô Serôa

Quem nasceu e viveu em áreas de colonização vive numa mistura danada. Uma mistura étnica. Eu tinha o nonno e a nonna do lado do pai e vovô e vovó do lado da mãe. Se bem que a minha avó era filha de um italiano. Eu vou falar do meu avô, pai de minha mãe, Francisco Serôa da Motta Sobrinho. Falando dele, falarei da minha avó, Maria Carmela Sentone da Motta. Mas não dará para contar numa memória só.

Vovô, conhecido como seu Serôa, era lavrador, poeta, autor de inflamados discursos... Um autodidata de grande inteligência. Era surpreendente falar com ele, de ler as cartas de amor trocadas com a minha avó antes de casarem, de ler as suas poesias, as suas cartas, mesmo as cartas, nas quais brigava com o seu irmão Candinho.

O meu avô antecedeu os ambientalistas. Ele foi um ambientalista antes de “inventarem” esta palavra. No quintal da sua casa, no alto do morro do Petinga, havia vários coxinhos com quirera para os pássaros, povoado por canários da terra; havia bananas espetadas em varas de bambu para os sabiás, tiés do vários tipos e outros pássaros que por ali passassem. Falava em equilíbrio ecológico; aí de quem tocasse nas cobras caninanas que passeavam até pelo teto da sua casa. Era comum assistir as cobras trocarem de pele e a pele velha cair sobre quem por ali estivesse.

A casa era de madeira sem sarrafos para fechar as frestas entre as tábuas. A sua cobertura era de zinco.  O Petinga, cercado de morros, era muito quente, mas a casa sempre tinha uma temperatura agradável, pois parte brilhante do zinco faz com que os raios do sol reflitam, impedindo que o seu calor seja absorvido. Quando estou no carro em dia de chuva, o som dos pingos sobre o teto me faz lembrar a casa de vovô.

Era engenhoso. A água para beber vinha do morro por uma caneleta e para proteger a limpidez da água plantava agrião na sua extensão. No final havia uma tubulação de tronco de jiçara para a utilização da água. Uma derivação que ia até perto da casa de onde se pegava água para consumo. A tubulação era sustentada por forquilhas feitas de troncos de árvores, principalmente de goiabeira.

Ao lado do caminho que ligava a casa à bica, em que jorrava a água vinda através da caneleta, havia um tanque, feito a muque por vovô e pelos meus dois tios, Almir (Mimo) e Rubens (Rubico). No fundo do poço havia uma tubulação de manilha com uma tampa de cimento, manuseada por uma manivela. A água captada do fundo do tanque girava a roda d’água da fabrica de farinha de mandioca. Girava o ralador e as pás do forno de torrefação da farinha.

Havia um sistema de correia e polias para funcionar um só instrumento ou para fazer girar mais de um.

Enquanto que nas outras fabriquetas de mandioca de Morretes ralava-se a mandioca a mão e a torrefação em tachos, na de vovô o ralador e o forno de torrefação eram acionados a água.

Do ralador, para a prensa.  O líquido que escorre da massa de mandioca ralada quando imprensada é conhecido como veneno da mandioca, o ácido prússico, de alta toxidade, mas muito volátil. Em poucas horas perde a toxidade e se torna a matéria prima para fazer um polvilho que vovó aproveitava para fazer bolinhos. Para evitar que a criação viesse ingerir este líquido e para aproveitá-lo, vovô construiu uma tubulação e um tanque raso para que a evaporação do ácido fosse mais rápida.

A mandioca bem prensada ia para a torrefação. Acendia-se o fogo e numa chapa côncava a farinha era mexida com pás que giravam impulsionadas pela roda d’água.

A minha avó quis comprar um rádio para acompanhar as novelas, quando o Direito de Nascer era irradiado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Meu avô comprou uma rádio à bateria e com o meu tio Almir montaram um carregador de bateria com um alternador de automóvel girado pela mesma roda d’água. E a minha avó se deliciava com as proezas de Albetinho Limonta e demais personagens.

Esse rádio foi o motivador para que o meu tio Almir fizesse um curso de radio técnica por correspondência numa escola norte-americana, a National School, que ministrava cursos em português. E foi assim que a eletricidade gerada por eles mesmos começou a chegar à sua casa.

Vovô faleceu em dezembro de 1958, dois anos e meio depois do falecimento da  minha mãe.


Este é um rápido perfil de um homem, que para muitos, era uma contradição. Um homem tão inteligente, diziam, morando lá no alto daquele morro. Aquele morro era a sua vida; foi ali que ele encontrou lá pelos idos de 1915, quando foi ver as terras, um pedaço de jornal com a manchete: “O SEU LUGAR É AQUI”.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A chegada da cegonha

Certa noite o meu pai me acordou e falou: a cegonha está para chegar e ela não gosta de crianças por perto.  Fique no caminhão e cuide da sua irmã. Que cegonha chata! E onde já se viu, não gostar de crianças, se ela era a transportadora de crianças.  Esquisito!  O pai sabia das coisas. Fazendo as contas, eu tinha 4 anos e sete meses e a minha irmã, sob a minha tutela, 2 anos e quatro meses.

Era um caminhão marca International e tinha rádio. Meu pai ligou o rádio e eu até me esqueci da cegonha, pois comecei a procurar onde estavam aqueles homens e mulheres que estavam falando. Deveriam ser muito pequenos para caber naquela caixinha tão pequena. E falavam alto! Minha irmã, muito viva para os seus dois anos, também ficou curiosa. Procura daqui, procura dali, e nada de encontrar aquele pessoal que não parava de falar.

Quando me lembrava da visita da cegonha ia até a porta entreaberta da garagem e dava uma olha. Nada da cegonha e também não ouvia nada de conversa em casa. Mas vi dona Margarida chegar. Ela era a primeira madrinha de quase todas as crianças de Morretes. Talvez imaginasse que ela fosse uma espécie de agente da cegonha, pois já haviam me dito que o meu pai foi buscar dona Margarida quando nasci. Nonno tinha uma eguinha que ganhava todas as corridas nas raias de Morretes  e era uma boa troteadora na aranha (uma charrete com rodas de madeira e aro de ferro). Quando papai foi avisado que a cegonha estava para chegar deixou a eguinha preparada para ir até a cidade (eu nasci no Central, a uns 3 ou 4 quilômetros da cidade).

Eu não me lembro quando Marisa nasceu, mas o ritual deve ter sido o mesmo.

Foi uma noite trabalhosa e sem resultados: não encontrei aquele pessoal que tanto falava no caminhão e nada de ver a cegonha. Até que papai chegou. Minha irmã já havia dormido e papai me falou que a cegonha havia chegado silenciosamente e deixado mais uma irmãzinha. E nos levou dormir. Deixamos para ver a irmãzinha no dia seguinte, pois ela já estava dormindo.

Passados dois anos e meio cheguei em casa e me avisaram que a cegonha havia chegado e deixado uma irmã. Fiquei chateado, pois pela segunda vez esta cegonha chega em casa, deixa outra irmã, e nada de eu me encontrar com ela. Deveria haver algum acordo da cegonha, ou do dono do cegonhal, com a dona Margarida, pois quando alguém recebia a visita da cegonha, lá estava ela, Dona Margarida. Como eu já desconfiava, como comentei acima.

Este negócio da cegonha me deixava ensimesmado. Eu não conseguia entender onde ia parar a barriga da mulher que recebia a cegonha. Estava barriguda e logo após sem a barriga. Falavam uma porção de coisas, mas nada daquilo me convencia. Para me convencer teria que ver a cegonha.

Até que uma vez cheguei na oficina em que papai, Giocondo e Joaquinzinho consertavam os carros, num  barracão cedido por tio João Sotta, escutei um papo que me deixou atrapalhado de vez. Falavam a respeito de um rapaz havia “comido” uma moça e ela estava esperando a cegonha.  E aprendi outra palavra: prenha. “A moça ficou prenha!”. Comido? Como? Quando pedi explicações levei um fora, que aquilo não era conversa para criança.

Eu e Marisa costumávamos estudar pela manhã e minha mãe lecionava à tarde. Eram momentos agradáveis de “pesquisa”, isto é, mexer nos espaços proibidos. Uma vez encontramos um revolver de meu pai e corremos atrás de Isabel. Ela se assustou, saiu correndo para a rua e nós atrás avisando para não se assustar, mas ela não nos escutava de tão apavorada. Encontrávamos muitas coisas interessantes. Os pais sempre têm coisas interessantes que escondem dos filhos.

Como sabemos, não existia e ainda não existe educação sexual. Quando se fala do assunto é por metáforas e as crianças não entendem nada. Inclusive os professores.

Na década de setenta um grupo de alunos me mostrou, orgulhoso, um trabalho sobre educação sexual, que falava de gestação. Aparecia o galo “cobrindo” a galinha, o porco com a porca, o boi com a vaca, o cão com a cadela, o cavalo com a égua e, por fim, o homem e a mulher... deitados na cama, cobertos lado a lado, de barriga para cima. Imagine na década de 40.

Numa das pesquisas vespertinas encontrei um livro de sexualidade, talvez escrito na década de trinta ou na de quarenta. Era bem ilustrado e mostrava, em detalhes, o processo de gestação. Chamei Marisa para ela ver que não havia nada de cegonha. Quando a minha mãe chegou da escola cobrei uma explicação. O livro sumiu.

E foi assim que descobri que a história da cegonha era uma estória.