quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Festa dos padroeiros das capelas e a banda Euterpina

Eric Hunzicker, o historiador de Morretes, publicou uma descrição da festa de São Pedro, que me transportou aos meus tempos de coroinhas no tempo do Padre Camargo.

Eu e Valdinho Colodel éramos os coroinhas (sacristão, como então éramos chamados) do Padre Camargo. Tínhamos, então, por volta de 13 ou 14 anos. Éramos excelentes profissionais (desculpem-me a imodéstia) e isto nos garantia privilégios que tínhamos nas aulas de latim no ginásio, ministradas pelo Padre.

Nas festas de São Pedro, como em outras capelas, o Padre ia de charrete, conduzida por Valdinho. Claro, neto de seu Lourencinho, ferreiro antigo de Morretes, exímio colocador de ferraduras nos cavalos da cidade.

Numa festa no Rio Sagrado, Jairo, sobrinho de dona Sebastiana insistiu em ir junto. Dona Sebastiana tomava conta do posto Telefônico e Jairo era o seu estafeta; corria a cidade para chamar as pessoas para atender telefonemas no posto, na pracinha do paredão (estou usando a toponímia da época). Vivia cansado.

O Padre era madrugador. Saíamos ainda escuro, pois rezava uma missa às sete e antes da missa havia um opíparo café na casa do festeiro e/ou capelão. O almoço era um banquete, dentro das possibilidades locais. Padre Camargo sentia-se o lídimo representante de Deus em Morretes. Bem diferente do Padre Saviniano que o antecedeu, a expressão da modéstia.

A prima Sirley Malucelli, sobrinha da Beta Grossi, costureira de mancheia e pesquisadora da vida alheia local[1], resolveu fazer um chapéu novo para o Padre Saveniano para usar numa reunião em que como pareceriam padres de Curitiba, Paranaguá, Antonina e outras cidades próximas. Como era costume na época, os padres iam chegando e colocando os seus chapéus na chapeleira. E lá estava o chapéu novinho em folha, presente da Beta. No término do encontro, cada padre pegou o seu chapéu e retornou para a sua paróquia e um deles com um chapéu novinho em folha. E lá ficou um chapéu em pior estado daquele que Beta substituiu.

Voltando à festa do Rio Sagrado. Saímos pouco antes das quatro da manhã. Escuro. O Padre e Valdinho (o condutor) na charrete, eu e Jairo de bicicleta. Quando estávamos no alto do Morro Comprido senti falta de Jairo. Avisei o Padre e voltei. Saindo de Morretes, havia uma subida, uma descida e em seguida a subida maior. Embalávamos a bicicleta na primeira descida para subir com folga na subida maior.  Jairo dormiu na descida e caiu num jasminzal. Acordou sem saber onde estava sem apoio para se levantar, eu o descobri pelos seus pedidos de socorro.

Dona Helena Cit Cordeiro lembrou-se da “Banda dos Coroas”, paixão de Ewaldo Zilli, que hoje nos observa do outro lado. No meu tempo de guri em Morretes o nome da banda era Euterpina, uma homenagem a Euterpe.

Segundo o “Santo Google”, Euterpe, a Doadora de Prazeres do grego eu (bom, bem) e τέρπ-εω ('dar' prazer), foi uma das nove musas da mitologia grega, as filhas de Zeus e Mnemósine, filha de Oceano e Tétis.
Era a musa da Música. No final do período clássico, foi nomeada a musa da poesia lírica e usava uma flauta. Alguns consideram que tenha inventado a aulos ou flauta-dupla, mas a maioria dos mitólogos dá crédito a Marsyas.




[1] Eu já contei aqui de quando Beta ficou presa na porta do cemitério. Já estava escuro, quando ela pedia socorro as pessoas fugiam pensando que fosse alguma alma penada querendo sair fora dos muros do campo-santo.

sábado, 6 de setembro de 2014

A saga do paciente

Na sexta feira após o carnaval de 2009 o meu coração deu um susto. Fui ao hospital, colocaram-me numa cadeira de rodas e me levaram direto para o setor de emergência. Colocaram vários eletrodos no meu corpo, a cada meia hora vinha uma moça com um carrinho e fazia um eletrocardiograma. Não tinha nem botões para perguntar a eles se eu emplacaria o sábado. Três ou quatro médicos não saíam do lado da cama. Preocupante! No final disseram que seria bom que eu fosse à UTI. “O senhor aceita?”. E se não aceitar? “Ah, não nos responsabilizamos”. Então tudo bem. Vamos lá. Minha filha, como não podia ser diferente não teve nem tempo para ficar apavorada, correndo com a burocracia junto ao convênio para autorizar a internação. Mas os seus olhos demonstravam a sua preocupação.

Deixaram-me durante o sábado e domingo na UTI. No sábado à noite falei para a atendente que eu queria tomar um banho. Ela se ofereceu a me lavar. Não aceitei. Queria um chuveiro. Perguntou se eu aguentaria. Se eu não aguentar você me traz de volta, sugeri.

Trouxe uma privadinha de rodas, fez-me sentar e me empurrou até o banheiro. Todos os internados ficam com uma peça de roupa que chamam de camisola que tampa a frente e deixa a bunda de fora. O local em que fiquei era de passagem e cansei de ver passagens de bundas naquela privadinha de rodas. Até que chegou a minha vez. Lá fui eu.

A moça era muito bacana, responsável. Abriu o chuveiro, esperou a temperatura certa, colocou uma toalha no chão e avisou que podia tomar o banho. Afastou-se um pouco e ficou de braços cruzados próximo à porta. Fechada.

Você vai ficar aí? O senhor está com vergonha? Bem, não é propriamente  vergonha, mas nunca tomei banho com audiência. Eu posso sair, e se o senhor cair? Tudo bem, então pode ficar aí.

Eu banho gostoso! Deve ter ajudado para sair da UTI. Mas ainda fiquei monitorado por mais vinte e quatro horas por aparelhos.

Na segunda feira fiz alguns exames e na terça fui fazer um cateterismo. É impressionante. Colocam a criatura numa maca mais estreita que o corpo. Sem lugar para colocar os braços. A máquina fica presa no teto por gigantescos parafusos. Se a máquina se soltar amassa o paciente. E eu pude entender o sentido da palavra paciente.

Começaram os preparativos. Até que senti uma coisa fria na virilha direita. Perguntei para a enfermeira o que era aquilo. Ela me falou que era tricotomia. Ela deve ter se assustado com a minha interrogação, pois foi um susto danado.

Há uma discussão teológica desde os primeiros séculos da era cristão a respeito da unicidade do homem, ou se ele era dividido em partes: corpo, alma e espírito. Os guarani têm um entendimento semelhante que costumamos nos referir à duplicidade da alma. Ñé é, que corresponde ao que chamamos de alma, é o angüery, um espírito nos moldes que chamamos visagem. Ñé é vem de um lugar semelhante ao que chamamos de céu e se manifesta quando a criança começa a entender o mundo que a rodeia. Quando a pessoa morre ela retorna de onde veio, uma espécie de  terra sem males. E o espírito ou anguery, fica zanzando por aí, por vezes “atentando” as pessoas, outras vezes ajudando.

A isto os teólogos chamam de tricotomia. Mais recentemente surgiram interpretações teológicas da dicotomia, corpo e alma.

Depois do meu susto ela me explicou que tricotomia (na medicina) significava depilar. Eu não sabia que deste a metade da adolescência praticava tricotomia no rosto, quase que diariamente.

Refeito do susto, a enfermeira “me preparou” e no final chamou o médico. E ele começou a fazer o cateterismo. Até que ele avisou: descobri o seu problema: uma obstrução de 80% numa artéria do coração. E daí, perguntei, o que é que significa isto? Tem que colocar um stent para abrir a artéria. Quer fazer isto agora ou outro dia? E tem que operar? Perguntei. Já fiz a primeira parte da operação. Ah, então faz isto já. E mandou esperar.

Foi procurar a minha mulher explicou tudo para ela e talvez alguma coisa a mais, pois ela estava apavorada. Vi depois. Ela teve que assinar uma papelada e a colocou frente a um vídeo para acompanhar o procedimento.

No final me tiraram daquela maca e me colocaram numa outra, a que vim do quarto. Deixaram-me numa sala de recuperação e recomendaram que eu não deveria me mexer nas próximas seis horas.

Seis horas depois chegou a enfermeira trocar a bandagem. Enquanto ela fazia o seu trabalho falou “empurre isto para lá”. Eu não entendia, pois não sabia o que era “isto”. Depois de ela muito repetir entendi que era o saco.

É melhor “isto” do que escroto. Palavrinha feia!