segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Tio João e a história da Rosa Homem


Eu estava no ginásio e o meu pai conseguiu com o seu Marquinho De Bona para que eu estagiasse no escritório do Marquinho Malucelli (havia vários Marcos e Marquinhos em Morretes!). Marcos De Bona era o chefe do escritório era um homens de mil atividades, dentre ela Presidente do Clube Sete de Setembro e agente  de uma companhia de capitalização, Bahia Capitalizações. Nos horas de folga (se havia) era correspondente do jornal O Dia em Morretes e era chamado para fazer discursos. A sua filha Lígia publicou um livro com a coletânea de parte dos seus discursos, com um título sugestivo Tenho dito....

Lá no escritório trabalhavam, pela ordem hierárquica, Darcy, Lívio e João Veloso, três antoninenses importados para jogar no time Operário Futebol Clube. E também trabalhava Odith Salomão, minha amiga desde o início do curso primário. E eu estagiário.

Para ganhar alguns trocados seu Marquinho pedia que eu auxiliasse no Sete para servir as mesas. Eu não tinha muito jeito para este trabalho; o que eu gostava era cobrar as mensalidades da Bahia Capitalização e todos os cantos do município, menos na área central da cidade, obrigação de Odith.

O único local da cidade que eu cobrava era na casa da Olga, a zona de Morretes. Dona Olga era uma mulher de respeito. Todos respeitavam. Ela deveria saber muitos segredos dos cavalheiros nativos e visitantes.

Casa da Olga era a referência politicamente correta. Mas a referência corrente era de zona ou puteiro. Diferente da Casa de Eni de Bauru, o puteiro mais famoso e prestigiado do Estado de São Paulo. “Para a população local, Eny possuía um lado demoníaco e outro angelical. Financiou diversas obras de caridade e encontrou famílias para crianças abandonadas”[1]. As más línguas  diziam que ela produzia mulheres para o seu negócio, mas não. Recentemente foi publicado um livro biográfico de Eni, escrito por um jornalista de Bauru[2].

As cafetinas – e as prostitutas - costumam ser pessoas respeitadas e ao mesmo tempo desprestigiada, como o autor relata a respeito de Eny Cezarino. Em Aragarças havia Joana Boa, tratada como Tia Joana, pelos fabianos (militares da FAB). Quando foram construídos os aeroportos do Cachimbo e de Jacareacanga, o então Major Veloso, que ficou conhecido por liderar a Rebelião de Jacareacanga, contratava Joana Boa para periodicamente arregimentar prostitutas para os trabalhadores dos aeroportos em construção. Estes trabalhadores ficavam isolados por um largo tempo e as prostitutas aliviavam as tensões.

Conheci Joana Boa em 1959. Residia em Goiânia no bairro do Botafogo e tratava os sargentos de pouca idade, longe das suas famílias como se fossem seus filhos. Ela já era uma ex-cafetina. Um dos livros de Mário Vargas Llosa, Pantaleão e as visitadoras, lembra, em alguns aspectos, a relação de agenciamento entre Veloso e Joana Boa.

Somos herdeiros, nas culturas ocidentais, de uma misoginia que nos remete às eras pré-cristãs colocando as mulheres numa posição subalterna aos homens. As prostitutas têm algo de Lilith, a primeira Eva, portadora da uma face demoníaca e de outra angelical, mas sem o caráter subserviente  e “erradiço[3]” em relação segunda Eva. Esta Eva foi feita da costela do homem para servir a ele. Como a costela é curva ela nunca ficará ereta como o homem e por isto deverá ficar sempre sob a sua proteção.

A prostituta tem um caráter de Lilith no imaginário das pessoas e as mulheres “honestas” da segunda Eva. Sempre sob a ameaça de ser iludida por alguma serpente. O homem quando ingressa num bordel entra num mundo diferente, fonte de muitas crenças e preocupações que colocam em perigo a sua masculinidade, poderosa, no mundo fora dos bordeis. 

Nesta época, início da década de 50 do século passado, Tio João Fante e tia Regina Fante, dois irmãos, ele solteiro e ela viúva, moravam na reta do Porto. Eles eram meus tios avós. Os sobrinhos netos são tratados como netos.  Era assim com tio João e tia Regina.

A casa da Olga ficava no começo da reta do Porto[4] junto ao trilho da linha ferroviárias do ramal Morretes-Antonina. A casa era cerca por algumas árvores e arbustos menores que a deixava escondida para quem passava pelo caminho ao lado dos trilhos e pela estrada. Mas havia alguns caminhos e um deles dava acesso à reta do Porto.

Numa das minhas idas à casa da Olga fiz a cobrança e saí na reta no exato momento em que tio João Fante passava. Ele se assustou a me ver saindo por aquele caminho e me perguntou de onde eu vinha. Ele sabia, pois quem saía por ali só podia ter vindo da casa da Olga. A preocupação dele era grande. E me contou a história da Rosa Homem.

Rosa era mulher até a meia noite. Quando o relógio batia a ultima badalada ela virava homem. E o homem que estivesse com ela, teria que “virar” mulher, ou fugir pulando a janela. Aquele caminho que ele me viu sair era a rota de fuga dos que conseguiam fugir.

Todo guri é curioso e quis saber se ele, alguma vez teve que fugir da Rosa Homem e pulado a janela. Ele me disse que não. Não foi do tempo dele, mas os amigos falavam dos que tiveram que fugir.





[3] É um neologismo, pois não encontrei uma palavra para definir a oposição às expectativas de virtudes atribuídas à segunda Eva. Antes do episódio da maçã. O mito de Lilith voltou a ser contado pelos rabinos da Idade Média. Contavam estes mitos que Lilith não concordava em ter relações sexuais de forma subalternas sob Adão, mas não era satisfeita porque não era considerado certo Adão ficar sob ela. A posição que chegou até hoje conhecida como “posição do missionário”, também chamada de “papai-e-mamãe”. Ela reclamava, pois não entendia porque, se ela foi feita de barro como Adão tinha que ter uma posição subalterna. Por não ser atendida, abandonou Adão e foi embora. Adão ficou muito triste e pediu ao Senhor que a convencesse voltar. O Senhor enviou dois arcanjos à procura; depois de muito procurar Lilith foi encontrada. Os arcanjos deram o recado, talvez de forma não tão diplomática. Lilith ficou muito zangada e mandou os arcanjos embora. Em resposta o Senhor deu-lhe um castigo: seus primeiros cem descendentes morreriam. E Lilith foi  transformada, segundo estes mito, num súcubo, demônio de forma feminina, que perseguia os homens até ter relações sexuais com eles, enquanto dormiam, geralmente homens solitários, até consumir toda a sua energia vital. A forma masculina do súcubo é o íncubo.
[4] Estrada que liga Morretes ao distrito do Porto de Cima.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

A vidraça do ginásio

Na metade de 2003 recebi um recado que me alegrou muito. Era de Roselis Latuf avisando-me que estava organizando um almoço comemorativo aos cinqüenta anos da nossa formatura ginásio. Já chegamos ao nosso quarto almoço. É um momento em que nos desligamos da Morretes de hoje. Também do mundo de hoje. Passamos a relembrar o mundo daquele tempo.  De muitas coisas guardadas nas sombras da memória. Um lembra um pedaço, outro mais um pedaço e logo a imagem da memória fica completa. E podemos comparar a vida de Morretes de então e a Morretes de hoje.

Eu e Osvaldo Colodel (Valdinho) somos amigos desde o jardim de infância e por isto temos muitas histórias em comum para recordar. Num intervalo de aula, no ginásio, Valdinho estava sentado na carteira e eu dei uma chave de braço fazendo-o quebrar a vidraça com os pés. Foi vidro por todo o lado. Dona Rosinha, a zeladora, correu ver o barulho e avisou: dêem um jeito nisto antes que o Dr. Melo saiba. Dr. Melo era o diretor do ginásio.

Depois do almoço Valdinho foi a minha casa me chamar para consertar o estrago. Tínhamos que fazer alguma coisa, pois ele era vizinho do Dr. Melo e eu tinha a minha mãe, professora e muito severa. Era complicado ser filho de professora; teria que ser o exemplo[1]. Mas consertar como se nenhum de nós tinha algum centavo? Ele deu a idéia de vender garrafas e jornais velhos para conseguir dinheiro.

Com um monte de jornais fomos ao negócio do Marquinho (que se transformou, bem mais tarde, no Malucelli da Visconde). Quem comprava era o Máximo Salomão, ou um dos Joanitos, o Malucelli ou o Airosa. Olhavam bem a boca da garrafa para ver se não estava quebrada, em condições de ser fechada com a chapinha, ou champinha no nosso linguajar. Procurávamos o Tonico Nhão para pesar os jornais, ele não reparava, ou fazia que não via, a nossa ajudinha com a ponta dos dedos para tornar os jornais mais pesados.

Feita a venda, conseguimos algum dinheiro e fomos á oficina seu Euclides de Freitas para nos ajudar. Era um marceneiro de primeira. Fazia de tudo. Arrumava de tudo que fosse de madeira. Era quem melhor conhecia os segredos de fazer um bom caixão de defunto. Era o entendido das cores do caixão segundo o sexo e a idade do(a) finado(a). Entendia de cores de caixão mais que o Padre Camargo, pois ele costumava perguntar a nós, sacristãos (depois chamados de coroinhas, com a globalização). Como éramos nativos, dávamos a informação correta. E tínhamos que saber para dar o toque de sino certo. O toque era unisex. Claro, até recentemente as almas e os anjos não tinham sexo!

Não bastasse, seu Euclides era músico da Euterpina. Era um conjunto musical que também era banda, orquestra e tudo o que lhe coubesse fazer. Seu Euclides tocava tuba. Ele contou, certa vez, que não havia jeito de sair som da tuba. Alguém, por malvadeza, jogou um pão de sanduíche dentro da tuba; com a saliva o pão inchou e entupiu a passagem do som.

Além de todas estas suas habilidades profissionais e de pessoa excepcional, era um bom professor de marcenaria e um consultor financeiro. Chegamos lá e contamos o nosso problema. Para que serviriam os nossos parcos cruzeiros? Seu Euclides nos emprestou as ferramentas necessárias e nos mandou limpar e medir o local do vidro e medir com cuidado.

O ginásio funcionava somente pela manhã. Tivemos que procurar a dona Rosinha para abrir a porta para permitir a nossa entrada no recendo do ginásio.

Dona Rosinha, esposa do seu Manequinho Goiabeira, oficial de justiça, filha de dona Isaura, irmã do Carlito Butiá e mãe do Josué. E mais que tudo isto, uma amiga dos alunos. Fizemos um serviço de profissional.

Ainda deu tempo para ir ao matadouro ver o seu Felix matar boi. Seu Felix era o herói da gurizada, fazia do mesmo jeito que faziam os cowboys dos seriados que passavam depois dos filmes no cinema do seu Nhozinho. Mas perdi o chimarrão das três na alfaiataria do Honilson Madalozo.

Mas ainda havia uma preocupação, a preocupação do dia seguinte: enfrentar o Dr. Melo.

Todos os alunos entravam em forma antes de as aulas começarem. As meninas na frente e os meninos atrás. E por altura, dos mais baixos aos mais altos. Cada um sabia o seu lugar. Cantávamos o hino Nacional, algumas vezes, o hino do Paraná ou o de Morretes outras vezes. E era o momento em que o diretor se dirigia a todos os alunos.

O dia seguinte, para mim e para Valdinho seria a hora da onça beber água. Estávamos contando com uma suspensão. Ninguém ainda havia quebrado vidro de uma janela do ginásio. Iriam dizer: o filho de Dona Dulce? Filho de professora tinha que ser santo. Tão santo que Dom Ático Eusébio da Rocha, arcebispo de Curitiba queria que eu fosse para o Seminário! Hoje eu seria um santo homem, preocupado com as coisas divinas. Logo os dois sacristãos, comentariam; a gente até encomendava almas nos enterros quando o Padre estava almoçando!

Doutor Melo começou o seu discurso dizendo que no dia anterior havia acontecido uma coisa muito feia... suspensos por suspensos, interrompemos o seu discurso e mostramos a janela consertada. Ele olhou para a janela e continuou: “e como estava falando e como a coisa feia foi consertada...”. Ficamos livres de uma suspensão.

Assim eram os alunos do antigo Ginásio Estadual “Rocha Pombo”.



[1] - Depois de velho descobri que eu não fui exemplo como imaginava. Izaltino me denunciou. http://mergulhandonavirtualidade.blogspot.com.br/2013/11/carta-aberta.html

sábado, 9 de maio de 2015

Há 30 anos, em Morretes...

Odith Salomão foi minha colega durante uma parte, ou todo, do curso primário. Lembro-me claramente, talvez por estarmos entrando na adolescência. Fizemos o quinto ano juntos. Os alunos que faziam o quinto ano eram aqueles considerados os mais fracos, que não poderiam “dar no coro” no ginásio. O ginásio começou a funcionar. Colegas nossos do quarto ano, considerados os melhores alunos fizeram admissão para constituir a primeira turma. Eu, Odith, Valdinho, Aydée, Leonice e mais alguns que de momento não me lembro, não pudemos participar da primeira turma.

O ginásio não era público. Não sei qual fora a sua constituição legal, o que sei é que os alunos pagavam mensalidades. No final do quinto ano nos preparamos para o concurso de admissão. O primeiro colocado seria agraciado com uma bolsa de um ano, o segundo com seis meses e o terceiro com três meses. Carlota Freitas, uma guria muito estudiosa, séria... Morava com o irmão e tinha duas sobrinhas mais ou menos com a mesma idade dela, Eli e Eni. Se eu estiver enganado com os nomes peço que se eu tiver algum leitor do meu tempo faça a correção. A família mudou de Morretes e muitos corações adolescentes ficaram entristecidos.

Carlota e Odith não chegaram a completar o primeiro ano. Carlota porque se mudou para outra cidade e Odith para trabalhar. E eu não cheguei a pagar mensalidade, pois antes do terceiro mês o ginásio foi estadualizado.

Papai sugeriu que eu deveria aprender uma profissão. Conversou com Seu Marquinho De Bona para ser estagiário no escritório do Marquinho Malucelli. Darcy era o contador, auxiliado pelo Lídeo e pelo João Veloso. Os três eram de Antonina e o emprego em Morretes era para eles jogarem no Operário, um dos dois times de futebol de Morretes. E lá estava Odith. Era funcionária do escritório.

Marquinho De Bona era um homem de mil instrumentos. Era coletor federal, chefe do escritório do Marquinho Malucelli, presidente do Clube Sete de Setembro, agente de uma companhia de capitalização, era quem fazia os discursos em todas as solenidades e ainda correspondente de um jornal de Curitiba. Nesta época era correspondente do jornal O Dia.

Seu Marquinho terminava os seus discursos com a expressão “tenho dito” e este foi um título de um livro em que a sua filha Lígia publicou os seus discursos seguidos de um comentário para contextualizá-los.

A companhia de capitalização era a Bahia Capitalização. Odith cobrava a mensalidade dos títulos na cidade e eu fora da cidade. Foi numa destas cobranças, num dia muito quente, cheguei no engenho do seu Lori Alpendre fazer a cobrança. Ele me falou para tomar uma quira (garapa fermentada para ir ao alambique para ser destilada e sair a cachaça) enquanto ia buscar o dinheiro. Eu me excedi na quira e tome o meu primeiro porre, que conto num texto aqui no Blog.

Olga, a dona do prostíbulo da cidade, também tinha um título. Um dia eu saía da “zona” e encontrei tio João Fante (meu tio-nonno). Ele ficou assustado e queria saber o que eu estava fazendo “na Olga”. Eu expliquei a ele. Disse para ter cuidado e contou a história da Rosa –homem, do tempo que ele era moço.

A “zona“ da Olga ficava no começo da reta do Porto, uma reta que ligava a cidade com o seu distrito, o Porto de Cima. A reta do Porto era emblemática. Os mais velhos contavam da velinha que percorria os seis quilômetros da reta.

O meu pai era muito namorador, frequentador dos fandangos nos sítios. Chamávamos de fandango os bailes de sítio. Ele contava que uma noite voltava para a cidade, mais precisamente para o Central, viu uma luz se aproximando e a eguinha que ele montava começou a ficar agitada. Para não cair do cavalo e ficar a pé teve eu dar meia volta e fugir da vela.

Eu e Odith ajudávamos no clube Sete de Setembro quando tinha baile.

Com isto eu ganhava alguma coisa e Odith completava o seu salário. Ela era três meses mais nova do que eu. Com o advento das redes sociais eu encontrei Odith no Orkut. Conversávamos muito a respeito de Morretes “do nosso tempo”.

Encontrei um texto de um dos papos meus com Odith. Como se refere a Morretes de um bom tempo atrás.  Este texto é de 2006. Quando falo em “há uns 20 anos” o fato descrito aconteceu lá pelo ano de 86 do século passado.


Há uns 20 anos estava passeando por Morretes com um dos meus filhos que deveria ter, naquela época, por volta de 12 ou 13 anos. Chegamos até o Ginásio. Paramos na porta da frente e comecei mostrar as salas que estudara no tempo do grupo e depois do ginásio. Chegou uma moça, não tão moça, mas moça para nós, pois era de geração bem mais nova.

 Perguntou se eu desejava alguma coisa. Disse-lhe que estava mostrando para o meu filho onde eu estudara, que fora aluno da segunda turma do ginásio. Ela abriu um sorriso de galhofa e me convidou para entrar: venha cá, aqui tem duas velhinhas que talvez seja do seu tempo.

As duas “velhinhas” eram a Maria Joana Valério (contei para ela no nosso primeiro almoço, dos 50 anos da formatura do ginásio) e a Maria Leoni Biúdes. A moça que me levou às “velhinhas” era uma filha do Eguiberto Consentino.

Cada um de nós se lembra de um pedaço da história que todos nós participamos. Como a nossa memória é seletiva, mas por conta de dela que ao nosso comando, cada qual se lembra de um pedaço.



As aulas de desenho com mamãe, depois com Dona Desauda. As aulas de Canto Orfeônico com Dona Semíramis. O Pe. Camargo batendo com o dardo na cabeça dos alunos e brigando com o Dr. Luiz, o Juiz de Direito. Tudo isto são lembranças vivas.


Você se lembra, no escritório do Malucelli, que você era a encarregada daquela prensa e que, o mais rápido possível, passou para mim? O Darcy, o nosso segundo chefe, depois do seu Marquinho De Bonna. O João, com aquela caligrafia caprichada preenchendo os livros contábeis? Boas lembranças.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Patudo

Patudo era o xodó de tio Almir, irmão da minha mãe. Era um potro heterodoxo; bom de montaria, um trote macio, mas também era um cavalo de tração. Puxava uma zorra cheia de cachos de banana – claro que morro abaixo – e não negava tempo ruim na carroça. A sua parelha tinha que ouvir um estalo de chicote para não deixar o Patudo puxar sozinho a carroça.

Tio Almir era o meu padrinho de crisma. Era ele que me levava e trazia do sítio do meu avô. Algumas vezes de bicicleta, outras vezes de carroça, mas o bom mesmo era montado no Patudo.

Patudo e a bicicleta não eram comuns. A sela era das melhores, compradas nas melhores selarias de Curitiba. Os pelegos de coro de carneiro, coloridos, os arreios com enfeites prateados, o culote e as perneiras tornavam o centro de atração das gurias por onde ele passava.

Patudo me fazia sonhar com uma montaria, um belo pelego, um poncho e um chapéu de aba larga. Meu pai tinha culpa no cartório, principalmente quando falava de eguinha de nonno, campeã da raias e de trote macio quando puxava a charrete. Era ela que nonno colocava na charrete para levar mamãe para as suas aulas na escola e foi ela que trouxe Dona Margarida, a parteira, quando nasci. “Porco Dio, guardar o cavalo onde, no seu quarto?” foi a resposta que recebi. Mas ganhei uma bicicleta. Foi a minha montaria. Levei um susto quando ele me mostrou a bicicleta na carroceria do caminhão, ao chegar de Curitiba.

A heterodoxia de Patudo provocava algumas surpresas. Claro que os meus tios Almir e Rubico  (Rubens) já conheciam as manias dele, mas muitas vezes fugia do controle. “Chegou a carroça dos Serôas...” comentava-se quando chegavam na cidade, tantas foram as vezes que a carroça disparou pela cidade. Na verdade era Patudo que iniciava a disparada. Era a segunda maior distração em Morretes. A primeira era quando fugia bois na cidade.

Era um misto de alegria (movimentava a cidade) e pavor (dois cavalos em disparada e descontrolados, puxando uma carroça com aros de metal sobre os paralepípedos que recentemente haviam caçado as ruas de Morretes). A alegria era a movimentação, um "diferente comum", como era o caso dos bois que fugiam.

Até que um dia fui passageiro da carroça em disparada.

Meu avô e meus tios resolveram fazer carvão. O sítio, no Pitinga, era rico em matéria-prima e o dinheiro do carvão financiava a abertura das roças de banana.

O meu avô era engenhoso. Leu revistas, livros e não sei mais o quê, e descobriu projetos de forno de carvão. Naquele tempo não havia Internet e muito menos o Google. Nem TV. O primeiro rádio que chegou ao Pitinga foi montado por tio Almir, tarefa de um curso feito por correspondência pela National School. Muito chique! Era uma escola por correspondência na Califórnia, EUA. O curso era em português.

Como não havia luz no sítio, ele ia soldar em casa, na cidade. Mas a luz, fornecida pelo engenho da cachaça do Central era tão fraca que precisava ser auxiliada por um lampião. Não esquentava o ferro. Meu pai arrumou um maçarico e um ferro de solda pequeno que era utilizado para soldar radiador de carro.

Com a orientação de papai, vovô montou um dínamo (como se chamavam os alternadores dos carros) para carregar a bateria para alimentar o rádio. Toda esta peripécia permitia que a minha avó e o meu avô acompanhassem as aventuras e desventuras de Albetinho Limonta, Mãe Dolores, etc., da novela O Direito de Nascer pela rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Bem, depois de estudar projetos de fornos de carvão, vovô desenhou o seu e chamou Zebedeu,  o Bedeu, casado com Maria da Luz. Bedeu era lavrador, pedreiro e carpinteiro. Construía casas de madeira e de tijolos.

O forno era redondo e tinha uns 15 metros de diâmetro. Uma fornada fornecia cerca de 100 sacas de carvão que demorava uns 15 dias para ficar pronto. Era um carvão muito bom e havia uma boa freguesia. Seu Lourencinho, dono de uma ferraria, era um deles.

Meus tios não gostavam que eu andasse com eles quando traziam carvão porque a poeira sujava muito. Para se ter uma ideia, em 1942 o meu pai foi buscar dois caminhões no Rio de Janeiro. Era época da guerra e a gasolina era racionada e os carros eram movidos a gasogênio. A viagem Morretes - Rio de Janeiro – Morretes demorou uns três meses. Ele contava que na volta hospedou-se num hotel em São Paulo. Tomou um banho e saiu com o outro motorista para fazer uma refeição. Ao retornar o porteiro não queria dar as chaves dos quartos, pois ali estavam hospedados “dois senhores de cor”. Não, eram eles antes de tomar banho.

Num certo dia eu fui com eles no seu Lourencinho, avô de Valdinho, meu amigo de infância. Era hora do almoço. Após entregar o carvão subi na carroça com os meus tios e fomos em direção de casa para almoçar. Patudo assustou-se com alguma coisa  - certa vez disseram-me aos meus tios que ele poderia ser vidente e fora assustado por algum espírito – e começou  a correr.

Na pracinha do paredão virou à esquerda, passou defronte a telefônica e na esquina da Farmácia do Roberto França entrou na rua XV quase em duas rodas. Os dois cavalos bem ferrados e o aro de metal das rodas da carroça faziam um estardalhaço nos paralepípedos da rua XV. Tio Almir, agarrado nas rédeas gritando Óóóóóó, pára Patudo!!!... E Patudo mais corria. E o pessoal nas calçadas gritava “cuidado que é a carroça do Serôas que voltou a disparar!” Seguiu toda a rua XV. Na esquina do Seu Salomão  viu à direita e na esquina seguinte, defronte a casa do Bôrtolo virou à direita e pegou a rua da Prefeitura, virou na rua das Oficinas, voltou a entrar na rua XV,  passou pela pracinha do paredão e novamente pela ferraria do seu Lourencinho, costeou o rio, entrou na rua do hotel, defronte à Igreja Matriz, passou por trás do grupo, pela rua do Centro Espírita e os cavalos já estavam suando. Tio Almir rouco de tanto gritar e tio Rubico ficou no meio do caminho. E a cidade em polvorosa. Fazia tempo que não fugia boi na descarga do vagão de gado no início da reta do Porto.

O espetáculo era como a correria das velhas diligências e carroções dos seriados do Velho Oeste, que passavam no cinema do Nhozinho.

Minha mãe viu tio Rubico, todo sujo de carvão, perguntou por mim.

- Está com o Mimo (apelido de tio Almir) na carroça!
- Ele está bem, não está machucado?
- Não sei, acho que não. Nem sei onde estão...

Quando a carroça começou a correr eu caí no assoalho dela, misturado com o resto de carvão, e não conseguia levantar com os saltos que a carroça dava. Quando os cavalos acalmaram pude sentar no banco, ao lado de tio Almir e voltar para casa.

Além da sujeira pedi um pé da “loirinha” (uma sandália de sola de pneu, lançada por Aramis Zanardi e difundida pelo Ewaldo Zilli). E por uma semana saía carvão dos meus ouvidos e das minhas narinas.