segunda-feira, 27 de abril de 2015

Patudo

Patudo era o xodó de tio Almir, irmão da minha mãe. Era um potro heterodoxo; bom de montaria, um trote macio, mas também era um cavalo de tração. Puxava uma zorra cheia de cachos de banana – claro que morro abaixo – e não negava tempo ruim na carroça. A sua parelha tinha que ouvir um estalo de chicote para não deixar o Patudo puxar sozinho a carroça.

Tio Almir era o meu padrinho de crisma. Era ele que me levava e trazia do sítio do meu avô. Algumas vezes de bicicleta, outras vezes de carroça, mas o bom mesmo era montado no Patudo.

Patudo e a bicicleta não eram comuns. A sela era das melhores, compradas nas melhores selarias de Curitiba. Os pelegos de coro de carneiro, coloridos, os arreios com enfeites prateados, o culote e as perneiras tornavam o centro de atração das gurias por onde ele passava.

Patudo me fazia sonhar com uma montaria, um belo pelego, um poncho e um chapéu de aba larga. Meu pai tinha culpa no cartório, principalmente quando falava de eguinha de nonno, campeã da raias e de trote macio quando puxava a charrete. Era ela que nonno colocava na charrete para levar mamãe para as suas aulas na escola e foi ela que trouxe Dona Margarida, a parteira, quando nasci. “Porco Dio, guardar o cavalo onde, no seu quarto?” foi a resposta que recebi. Mas ganhei uma bicicleta. Foi a minha montaria. Levei um susto quando ele me mostrou a bicicleta na carroceria do caminhão, ao chegar de Curitiba.

A heterodoxia de Patudo provocava algumas surpresas. Claro que os meus tios Almir e Rubico  (Rubens) já conheciam as manias dele, mas muitas vezes fugia do controle. “Chegou a carroça dos Serôas...” comentava-se quando chegavam na cidade, tantas foram as vezes que a carroça disparou pela cidade. Na verdade era Patudo que iniciava a disparada. Era a segunda maior distração em Morretes. A primeira era quando fugia bois na cidade.

Era um misto de alegria (movimentava a cidade) e pavor (dois cavalos em disparada e descontrolados, puxando uma carroça com aros de metal sobre os paralepípedos que recentemente haviam caçado as ruas de Morretes). A alegria era a movimentação, um "diferente comum", como era o caso dos bois que fugiam.

Até que um dia fui passageiro da carroça em disparada.

Meu avô e meus tios resolveram fazer carvão. O sítio, no Pitinga, era rico em matéria-prima e o dinheiro do carvão financiava a abertura das roças de banana.

O meu avô era engenhoso. Leu revistas, livros e não sei mais o quê, e descobriu projetos de forno de carvão. Naquele tempo não havia Internet e muito menos o Google. Nem TV. O primeiro rádio que chegou ao Pitinga foi montado por tio Almir, tarefa de um curso feito por correspondência pela National School. Muito chique! Era uma escola por correspondência na Califórnia, EUA. O curso era em português.

Como não havia luz no sítio, ele ia soldar em casa, na cidade. Mas a luz, fornecida pelo engenho da cachaça do Central era tão fraca que precisava ser auxiliada por um lampião. Não esquentava o ferro. Meu pai arrumou um maçarico e um ferro de solda pequeno que era utilizado para soldar radiador de carro.

Com a orientação de papai, vovô montou um dínamo (como se chamavam os alternadores dos carros) para carregar a bateria para alimentar o rádio. Toda esta peripécia permitia que a minha avó e o meu avô acompanhassem as aventuras e desventuras de Albetinho Limonta, Mãe Dolores, etc., da novela O Direito de Nascer pela rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Bem, depois de estudar projetos de fornos de carvão, vovô desenhou o seu e chamou Zebedeu,  o Bedeu, casado com Maria da Luz. Bedeu era lavrador, pedreiro e carpinteiro. Construía casas de madeira e de tijolos.

O forno era redondo e tinha uns 15 metros de diâmetro. Uma fornada fornecia cerca de 100 sacas de carvão que demorava uns 15 dias para ficar pronto. Era um carvão muito bom e havia uma boa freguesia. Seu Lourencinho, dono de uma ferraria, era um deles.

Meus tios não gostavam que eu andasse com eles quando traziam carvão porque a poeira sujava muito. Para se ter uma ideia, em 1942 o meu pai foi buscar dois caminhões no Rio de Janeiro. Era época da guerra e a gasolina era racionada e os carros eram movidos a gasogênio. A viagem Morretes - Rio de Janeiro – Morretes demorou uns três meses. Ele contava que na volta hospedou-se num hotel em São Paulo. Tomou um banho e saiu com o outro motorista para fazer uma refeição. Ao retornar o porteiro não queria dar as chaves dos quartos, pois ali estavam hospedados “dois senhores de cor”. Não, eram eles antes de tomar banho.

Num certo dia eu fui com eles no seu Lourencinho, avô de Valdinho, meu amigo de infância. Era hora do almoço. Após entregar o carvão subi na carroça com os meus tios e fomos em direção de casa para almoçar. Patudo assustou-se com alguma coisa  - certa vez disseram-me aos meus tios que ele poderia ser vidente e fora assustado por algum espírito – e começou  a correr.

Na pracinha do paredão virou à esquerda, passou defronte a telefônica e na esquina da Farmácia do Roberto França entrou na rua XV quase em duas rodas. Os dois cavalos bem ferrados e o aro de metal das rodas da carroça faziam um estardalhaço nos paralepípedos da rua XV. Tio Almir, agarrado nas rédeas gritando Óóóóóó, pára Patudo!!!... E Patudo mais corria. E o pessoal nas calçadas gritava “cuidado que é a carroça do Serôas que voltou a disparar!” Seguiu toda a rua XV. Na esquina do Seu Salomão  viu à direita e na esquina seguinte, defronte a casa do Bôrtolo virou à direita e pegou a rua da Prefeitura, virou na rua das Oficinas, voltou a entrar na rua XV,  passou pela pracinha do paredão e novamente pela ferraria do seu Lourencinho, costeou o rio, entrou na rua do hotel, defronte à Igreja Matriz, passou por trás do grupo, pela rua do Centro Espírita e os cavalos já estavam suando. Tio Almir rouco de tanto gritar e tio Rubico ficou no meio do caminho. E a cidade em polvorosa. Fazia tempo que não fugia boi na descarga do vagão de gado no início da reta do Porto.

O espetáculo era como a correria das velhas diligências e carroções dos seriados do Velho Oeste, que passavam no cinema do Nhozinho.

Minha mãe viu tio Rubico, todo sujo de carvão, perguntou por mim.

- Está com o Mimo (apelido de tio Almir) na carroça!
- Ele está bem, não está machucado?
- Não sei, acho que não. Nem sei onde estão...

Quando a carroça começou a correr eu caí no assoalho dela, misturado com o resto de carvão, e não conseguia levantar com os saltos que a carroça dava. Quando os cavalos acalmaram pude sentar no banco, ao lado de tio Almir e voltar para casa.

Além da sujeira pedi um pé da “loirinha” (uma sandália de sola de pneu, lançada por Aramis Zanardi e difundida pelo Ewaldo Zilli). E por uma semana saía carvão dos meus ouvidos e das minhas narinas.